A Rússia afunda num marasmo interior. Vladimir Putin passou dez dias desaparecido, cancelando compromissos internacionais relevantes.
Num país livre, o fato daria margem a muita especulação. Mas na Rússia, com o reflexo de épocas passadas, o sumiço do chefe máximo e a sua reaparição inexplicada pressagiam decisões trágicas, se não funestas.
O regime moscovita parece temer o progresso do movimento liberalizante interno, atiçado pela inflação e pela falta de produtos.
Em poucas palavras, o fantasma de um “Maidan russo” deambula entre as torres de São Basílio e ameaça desencadear uma epidemia liberalizante.
“Não a Maidan, não à guerra”; “Maidan é uma doença. Nós vamos curá-la”, gritaram os manifestantes convocados pelo governo russo no início do ano em numerosas cidades, de São Petersburgo a Vladivostok, segundo a revista francesa L’Express.
Putin mandou assim um recado: qualquer veleidade de protesto popular imitando o modelo da capital ucraniana será esmagado como uma bactéria.
“Não permitiremos um Maidan em nosso país” repetiam obsessivamente os organizadores da passeata putinista em Moscou.
Segundo o jornal “Le Monde”, nas passeatas havia membros do Parlamento ávidos de regalias, aposentados e jovens desempregados que aguardavam a recompensa, cossacos trazidos à força e grupos de motoqueiros conhecidos como “Os lobos da noite”, dispostos a obedecer qualquer ordem de Putin, que os trata de “irmãos”.
Putin atinge níveis de popularidade que competem com os de Fidel Castro e de Maduro, e superam por pequena margem os do PT brasileiro, se acreditarmos nas agencias oficiais.
Essa é a imagem que a “nova URSS” quer passar.
Mas o assassinato do oposicionista Boris Nemtsov e seu multitudinário enterro em Moscou falaram de uma situação muito diversa.
“Eles mataram um combatente da verdade”, dizia no cortejo Vyacheslav Buralnik, amigo de Nemtsov há mais de uma década, informou VICE News.
O cortejo fúnebre foi sombrio, apesar da multidão de pessoas presentes, da grande quantidade de flores e das bandeiras russas com fitas pretas e faixas onde se lia: “Eu sou Boris Nemtsov”.
Todo o mundo sabia quem foram “eles”, mas poucos se atreviam a dizer os nomes em meio à paranóia pró-Putin que a mídia desencadeou há mais de um ano.
Uma “passeata anticrise” em início de março não chegou a ser silenciada pelas balas que mataram a Nemtsov.
Segundo a polícia, que fornece números aprovados pelo regime, participaram 21.000 pessoas, embora o número mais plausível seja 70.000, a maior passeata oposicionista desde 2012.
Um porta-voz de Putin tentou apaziguar a desconfiança geral atribuindo o crime a uma “provocação” contra a Rússia. Alguns cidadãos chechenos foram presos e confessaram sob tortura serem os assassinos. A montagem ficou clara.
A oposição no Parlamento aponta como causa principal o ambiente de histeria coletiva insuflada pela mídia oficial a propósito da guerra na Ucrânia.
No melhor estilo dos expurgos estalinistas, o próprio Putin denunciou uma “quinta-coluna” que age na Rússia.
Mas os manifestantes anti-Putin provinham das pacíficas classes médias que estão sendo gravemente prejudicadas. Vários até tiveram a coragem de carregar a bandeira da Ucrânia.
De acordo com o líder oposicionista Ilya Yashin, a vítima estava preparando um relatório sobre o fluxo de armas russas para o leste ucraniano secessionista.
Anna Duritskaya, ucraniana amiga do morto que estava com ele no momento fatídico, ligou o crime a “acontecimentos internos da Ucrânia”.
Mas a maioria dos descontentes prevê um período de agitação ainda mais obscuro.
“No futuro – disse o psicólogo Alexander Vengea, entrevistado por VICE News –, a agitação não partirá de nós, mas da população faminta. Eu acho que haverá mudanças políticas, mas não na direção que nós queremos”.
A “nova URSS” se enfurna na espiral de desordens, fome e repressão que caracterizou o período leninista de sua funesta antecessora, a “velha URSS”.