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São Tomé na Índia e no Brasil

Imagem de São Tomé tocando nas chagas de Nosso Senhor Notre Dame
Imagem de São Tomé tocando nas chagas de Nosso Senhor Notre Dame

Em 1514, Afonso de Albuquerque, obedecendo as ordens de D. Manuel, propôs ao rei de Cochim a conversão ao Cristianismo. Lembrou-lhe, entre outras coisas, que “bem sabia ele que Nosso Senhor enviara São Tomé apóstolo e discípulo a essas partes, convertera muitos gentios à sua fé, e seu corpo jaz na Índia”.

Por isto, já se vê, a tradição da morte do apóstolo na Índia era corrente, não somente na Cristandade, mas também entre os gentios. As deambulações espantosas do santo através do Meio Oriente — chegando até a ilha de Socotorá, dali atravessando o oceano para desembarcar na costa do Malabar, prolongando a viagem até à China, conforme alguns, mas certamente, no dizer de todos, até Coromandel — havia séculos que faziam parte do lendário cristão.

Na Índia os portugueses encontraram elementos colhidos da boca dos indígenas, para ainda reforçar a crença. Juntavam afanosamente essas informações, pois “saber notícias do apóstolo São Tomé” figurava desde o princípio como incumbência obrigatória nos regimentos dos capitães. Foi com desvanecimento que D. Manuel, na célebre carta de 1501, para contar aos reis de Castela a viagem de Cabral, informou que “ali achou certa notícia de onde jaz o corpo de São Tomé, que é a 150 léguas distante dali, em uma cidade que se chama Meliapor, de pouca população. Trouxe-me terra de sua sepultura, e todos os cristãos, como também os mouros e gentios, pelos grandes milagres que faz, vão à sua casa em romaria”.

Ao que parece, porém, foi só em 1517 que vieram as primeiras notícias pormenorizadas da sepultura do santo, apontadas mesmo in situ por meia dúzia de portugueses vindos de Paleacate, não longe da moderna cidade de Madrasta. Tinham desembarcado ali talvez com fins mercantis, pois o porto era de importante tráfego. Indo hospedar-se em casa de uns cristãos armênios, estes ofereceram levá-los à sepultura do Bem-aventurado, convite gostosamente aceito.

Assim, aos 15 de julho do ano, partiram a pé, andando seis jornadas entre matas e brenhas, até chegarem a umas ruínas imponentes, grandes edifícios com ricos lavores esculpidos nas pedras desmoronadas, e casas de tijolos abobadadas. Eram estes os restos duma antiga cidade — quatro cidades, diziam alguns! — outrora próspera e populosa, mas erma já havia muito. Contavam-se maravilhas do seu esplendor passado, de seus ricos palácios e 3.300 templos de beleza sem par, onde cada uma das nações forasteiras que apareciam encontrava a sua adoração. O nome da cidade — Meliapor, Cidade do Pavão — era derivado da sua formosura, pois o pavão é a mais bela das aves. Foi a invasão do mar que destruiu tudo isso — informaram aos viajantes. O mar, outrora distante, avançou, comendo a terra até um tiro de malhão dos edifícios que devastou. Entre ruínas, só permanecia ainda de pé a chamada casa de São Tomé.

O aspecto era o das igrejas do Ocidente. Tinha três naves e três portas de madeiras lavradas de marcenaria. Na capela-mor viam-se cinco pavões por divisa e muitas cruzes. À semelhança das dos comendadores de Avis, eram gravadas nas paredes. Pegadas com a capela-mor havia duas pequenas capelas, nas quais — afirmava a gente da terra — jaziam os corpos de São Tomé e seu companheiro São Matias. Um muro circundante separava a igreja das ruínas, e dentro desta cerca mostraram aos portugueses o túmulo de “um abexi que servia o Bem-aventurado apóstolo e seu companheiro, o qual não quis lançar-se dentro com eles”.

Entre duas cruzes de madeira acendiam antigamente os candeeiros que iluminavam a igreja. Estava, porém, escura e triste. Só um velho indiano meio cego vivia ali. Ele varria e limpava a casa por devoção, como o tinham feito seus avós e bisavós, que eram cristãos, e pedia esmola para o azeite da lâmpada, que acendia quando aparecesse algum viajante.

De boa vontade o velho contou aos portugueses tudo quanto sabia desse lugar sagrado. Havia muitos e muitos anos — talvez uns mil e quinhentos, como dizia o seu pai, que o tinha de seus bisavós, que o ouviram de seus antepassados — que em Palecate desembarcaram dois desconhecidos oriundos de terras remotas, e então chegados da China. Andando na praia, eles viram os elefantes do rei a puxarem com toda a força um pau enorme, lançado pelo mar, sem que o conseguissem deslocar dali. O principal dos recém-vindos pediu ao rei que lhe desse o lenho para fazer uma casa. “Leva-o! — respondeu ele a rir — se puderes!”

Então, perante a estupefação de todos, o homem desapertou o cinto e amarrou-o ao pau, que primeiro benzeu, e sem o menor esforço o foi levando atrás de si umas doze léguas, sertão adentro, como se fosse um cachorrinho! “Um santo, sem dúvida nenhuma!” — clamou a multidão. E todo o povo acorreu para ajudá-lo a fazer sua casa. “Querem ser pagos em dinheiro ou em mantimentos?” — perguntou o santo. Aos que diziam dinheiro, ele dava cavacos da obra, que se tornavam moedas; aos que optavam pela comida, enchia as abas dos vestidos de areia, que logo se transformava em arroz! Assim a casa ergueu-se depressa. O santo ficou lá a viver, pregou o Evangelho e fez grandes milagres na terra. O próprio rei converteu-se com toda a família, apesar da oposição furiosa dos brâmanes. Estes conseguiram provocar um motim contra o pregador das novas doutrinas, fazendo-o atravessar por uma lança. Isto de acordo com os mais entendidos.

O povo, todavia, contava a coisa de outra maneira: O Santo costumava ir rezar num monte a certa distância da cidade. Talvez para que não o incomodassem, transformava-se muitas vezes em pavão. Ora, aconteceu certo dia que um caçador, deparando com um grupo de lindos pavões no cume da montanha, atirou a lança ao mais formoso. Qual não foi o seu espanto quando viu a bela ave tomar a forma de homem — um homem ferido de morte! Quis fugir, mas o santo deteve-o. Que não se assustasse, pois a sua morte era da vontade do Senhor. Que chamasse os seus discípulos, para que o enterrassem em sua casa. Assim se cumpriu, e desde então todo o povo venerava a sepultura.

Passaram-se dias e anos. O mar, avançando sempre, comera a terra até à cerca da igreja. Vieram as guerras e invasões, e a cidade despovoara-se, mas a casa do Santo permanecia de pé, venerada por cristãos, mouros e gentios. Em dias festivos, os naturais da terra, passeando seus ídolos, os traziam perante a sepultura, fazendo-os abaixar três vezes até ao chão, em homenagem ao Santo milagroso. Vinham peregrinos de muito longe. Entre outros, dizem que um duque chamado Jorge — inglês conforme uns, húngaro de acordo com outros — chegara lá em hábito de romeiro, para morrer nesse ambiente sagrado.

E a terra do sepulcro fazia milagres, curando muitos males e dando bom parto às mulheres da região. Com esta terra ou a do monte onde foi morto o Santo, misturada com a água de uma fonte que ali brotava, faziam barro com que esfregavam o ventre, e logo pariam sem mais trabalho. O mesmo barro, aplicado à testa, curava as dores de cabeça, e nas outras partes do corpo produzia igual efeito medicinal.

Estas informações, na sua maioria trazidas pelos primeiros visitantes portugueses, foram nos anos seguintes confirmadas no inquérito aberto pelos governadores D. Duarte de Meneses e, sobretudo, Nuno da Cunha. Tendo sido interrogados os mais velhos habitantes da terra, o testemunho de todos — cristãos, mouros e gentios — foi unânime.

É fácil avaliar o entusiasmo que tudo isto despertou nos portugueses. Desde então as romarias sucederam-se, e o rei encarregou os governadores da Índia de reparar a velha igreja ameaçada de ruína. Gaspar Correia descreve uma dessas peregrinações em que tomou parte, talvez como mestre de obras, pois sabia de construções. Lá foi com os companheiros, todos a pé, “cantando e folgando, com muito comer e beber” — tal e qual uma romaria de hoje! Isto até à vista da casa santa, quando “a todos nos tocou uma devota tristeza”. Tremendo como varas verdes, caíram de joelhos: “lembrando-nos dos nossos pecados… com tantas lágrimas, que não sei donde saíam”. Confessaram-se, o padre disse missa e todos comungaram. E, assim preparados, puseram mãos à obra.

No decurso de sucessivas escavações, descobriram várias ossadas, que diziam ser do rei convertido por São Tomé e de outros discípulos. Enfim, debaixo de tudo, deram com duas pedras grandes fechando uma sepultura cheia de areia, cal e ossos humanos, e no meio de tudo o ferro duma lança. Ao contrário das outras ossadas, todas negras, esta era perfeitamente alva. Tal fato, conjugado com o fragmento da lança, convenceu os portugueses de que os restos eram as relíquias do Santo. Com imensa reverência foram recolhidas num cofre da China, que o padre fechou à chave e escondeu em sítio escuro debaixo do altar.

Gaspar Correia diz ainda que viu ao lado da sepultura uma pedra, que o velho guardião já mostrara aos primeiros visitantes. Informou que fora trazida do monte onde morrera o Santo. Nela via-se “a figura de um pé, tão nítida como se tivesse sido moldada em barro mole. Na mesma pedra havia marcada a figura de um joelho, do Santo quando fazia oração. Depois os nossos quebraram a pedra e levaram pedaços por relíquias. Eu vi desta pedra um pedaço em que estavam o dedo polegar e os dois dedos a ele chegados”.

Não deixa de ser curioso este pormenor das pegadas de São Tomé gravadas na rocha, pois encontramos o mesmo fenômeno, bem longe da Índia, nas costas do Brasil. Pegadas impressas em pedra, atribuídas a São Tomé ou personagem que os portugueses identificavam com ele.

Não é a lenda de Meliapor que deu origem a esta. Aquela, só em 1517 foi colhida pelos portugueses que então visitaram a sepultura da Índia. São Tomé em plagas americanas já é referido na Nova Gazeta da Terra do Brasil, documento alemão de 1515, ou anterior ainda, que informa com respeito aos índios brasileiros: “Eles têm também recordação de São Tomé. Quiseram mostrar aos portugueses as pegadas de São Tomé no interior do país. Indicam que também têm cruzes pela terra a dentro. Quando falam de São Tomé, o chamam Deus pequeno, mas que havia outro Deus maior”. O autor anônimo acha esta lembrança nada estranhável, pois sabe-se que São Tomé “está corporalmente por trás de Malaca”, que ele, ainda mal informado, julga encontrar-se próximo do Brasil.

O certo é que as tribos brasileiras, como aliás outras sul-americanas, tinham a tradição de um misterioso estrangeiro barbado, que chegara — acompanhado de outro indivíduo, conforme alguns — havia muitos anos, do outro lado do oceano. Vivera certo tempo entre eles, ensinando-lhes muitas coisas, entre outras a de fazer pão com a raiz da mandioca. Mas um dia desapareceu tão misteriosamente como veio. Sumé, Zumé, Tumé — foi o nome que lhe deram, que tem sido traduzido por “pai estrangeiro”. Os portugueses, muito naturalmente, identificaram o viajante desconhecido com o ubíquo São Tomé.

Os jesuítas, chegando em 1549, encontraram a tradição ainda viva. Aceitaram a identificação, porém sem dogmatismo. “Çumé deve ser o apóstolo São Tomé” — escreve Anchieta na sua “Informação do Brasil”. E Padre Nóbrega, em carta datada da Bahia em l549, afirma que ouviu de certa “pessoa fidedigna que as raízes de que cá se faz o pão, São Tomé as deu”. Quanto às pegadas, diziam que se mostravam também em São Vicente, e Nóbrega acrescenta: “Estão próximo daqui umas pisadas figuradas em uma rocha, que todos dizem serem suas”. O Padre foi visitá-las, “por mais certeza da verdade, e vi com os próprios olhos quatro pisadas muito nítidas, com seus dedos. Dizem também que, quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos índios, que o queriam flechar. Chegando ali, se lhe abrira o rio, e ele passara pelo meio dele ao outro lado sem se molhar, e dali foi para a Índia. Dizem também que lhes prometeu que havia de tornar outra vez a vê-los”.

Pegadas de São Tomé gravadas na pedra
Pegadas de São Tomé gravadas na pedra

Fosse como fosse, em 1552 o Padre Vicente Rodrigues levou os meninos do Colégio da Bahia em romaria a essas mesmas pegadas de São Tomé. Partiram de manhã, cantando ladainhas até chegarem à praia. “Era maré baixa — conta um dos pequenos — e vimos as pegadas que as cobre a maré cheia. Estão em pedra muito dura, e as pegadas marcadas como se feitas por homem que resvalou enquanto fugia. A pedra deu lugar a seus pés, afundando-se como se fosse barro”. Deram louvores ao Senhor “por aquele mistério”, e foram cortar uns “paus compridos e fizeram uma cruz grande entre muitas pedras ao pé”. Erigiu-se também ali uma casa e uma ermida.

Tudo vago, tudo misterioso, é quanto se colhe a respeito desse Sumé, Zumé ou Tumé dos índios. Tradição tênue, aparecida entre povos sem história, hoje em dia seria impossível descobrir-lhe a origem remota. Os seus leves pontos de semelhança com as lendas de São Tomé, bem arraigadas no Oriente, embora impressionassem os primeiros colonizadores, nem por isto chegaram a convencer inteiramente.

A atitude do homem seiscentista encontra-se mais ou menos definida nos “Diálogos das Grandezas do Brasil”, em que o Brandônio, morador já antigo nas Terras de Santa Cruz, informa o Alviano, recém-chegado do Reino, sobre as coisas brasileiras. Os índios — diz aquele — “têm por tradição de seus antigos passados, que São Tomé lhes mostrou o uso da mandioca de que se sustentam”. A isto Alviano põe um grande ponto de interrogação, pois declara: “Não sabemos, nem lemos de São Tomé, que passasse nestas partes”. Objeção a que Brandônio responde: “Isso podia Deus fazer quando fosse servido”. Confessa porém que, “como disse, estes índios não dão, em prova do que querem dizer, alguma razão que concluinte seja”.

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