Moderados e Radicais: Farsa, Salame e Herói

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Após mais de três décadas, parece repetir-se no Brasil a tática usada pelo governo chileno na época de Allende.Alguns leitores nos têm perguntado sobre a ambiguidade da atual conjuntura política nacional: um governo de tendência socialista que mantém a economia de mercado típica do capitalismo.

Após mais de três décadas, parece repetir-se no Brasil a tática usada pelo governo chileno na época de Allende

Allende1
O presidente marxista Salvador Allende (direita) junto com Fidel Castro em Santiago, novembro de 1971

Alguns leitores nos têm perguntado sobre a ambiguidade da atual conjuntura política nacional: um governo de tendência socialista que mantém a economia de mercado típica do capitalismo.

Julgamos oportuno, tendo em vista esclarecer essa questão, transcrever um artigo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, publicado na “Folha de S. Paulo” em 14-2-71. Apesar de os tempos serem outros, podem-se notar, entretanto, importantes e inegáveis semelhanças com a época passada.

O artigo esclarece a dúvida de uma leitora sobre a situação do Chile, quando governado pelo marxista Salvador Allende. Um presidente que se apresentava como moderado e, no entanto, continuamente fazia o jogo dos marxistas mais radicais.

Fica a cargo de cada qual fazer as adaptações e aplicações cabíveis.

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Farsa, salame e herói

Plinio Corrêa de Oliveira

De uma leitora anônima:

A respeito do Chile, peço-lhe a gentileza de uma elucidação. — Allende [Presidente do Chile entre 1970 e 1973] é o propulsor da investida contra a propriedade privada, ou é um moderno, forçado por extremistas a um papel ao qual seu temperamento repugna? Vejo no comportamento dele sintomas que parecem justificar uma e outra hipótese. E daí sentir-me perplexa.

Vamos aos fatos. No período de instalação de seu governo, até pelos próprios opositores foi Allende saudado como um moderno. Parecia ser a garantia contra uma radicalização total e rápida. Teve assim as simpatias, pelo menos relativas, de toda espécie de empresários, fazendeiros, comerciantes e industriais. Dele esperavam que julgasse os terroristas do MIR1, e evitasse as reformas violentas.

Esta primeira imagem não tardou a se esvair. Ele anistiou terroristas do MIR, cruzou os braços diante das invasões de fazendas, e ipso facto estimulou uma reforma agrária ilegal e violenta.

Agora, Allende parece desejoso de recobrar sua primeira face. Se bem que acelere a desapropriação de fazendas com mais de 80 hectares, garante as outras contra as ocupações ilegais e a reforma confiscatória. Assim, sujeita a ritmo lento a execução do programa agrário dos socialistas e marxistas. E, ao mesmo tempo, se volta contra o novo secretário-geral do Partido Socialista, Carlos Altamirano, o qual discorda do que é, ou parece ser, a “moderação” de Allende.

Peço ao senhor que me explique quais as rivalidades individuais e os choques doutrinários que ocasionam tanta confusão, e qual, dentro desta confusão, a meta de Allende.

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Altamirano1
Carlos Altamirano e o MIR desempenhavam o papel de radicais no jogo da comunistização do Chile, durante o governo de Allende

Tenho impressão de que a missivista é professora, tal a clareza e a concatenação com que narra os fatos, e a precisão com a qual enuncia as perguntas.

Dito isto, passo a responder, retificando desde logo o pressuposto que, em sua pergunta, a simpática professora admite como líquido.

O Partido Socialista, ao qual pertencem Allende e Altamirano, é oficialmente marxista. Comunista, portanto.

Assim, os acontecimentos internos do Partido de Allende e Altamirano não devem ser julgados — como faz a missivista — segundo os critérios válidos para partidos liberais e burgueses, mas segundo os que são adequados a partidos totalitários. Um partido democrático é, internamente, uma miniatura de democracia liberal, e nele seus membros atuam com a elasticidade de movimentos inerente a esse regime. Os partidos totalitários soem ser, em sua vida interna, uma miniatura de Estado ditatorial, em que a razão dos acontecimentos deve ser procurada muito mais na decisão suprema de um ditador do que no entrechoque das opiniões ou das ambições individuais.

Isto posto, a verdadeira pergunta não deve ser qual o papel de Allende, mero títere como são, em geral, os comunistas de ribalta. O que realmente importa indagar é se o comunismo tem algum proveito com os vaivéns de Allende, e qual seja esse proveito. Só mediante o esclarecimento deste problema se pode descobrir o sentido da atuação do presidente do Chile.

Passo, pois, a este ponto.

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Em política — no Chile, como no Brasil ou em qualquer outro país — não basta derrubar o adversário. Duas condições são indispensáveis para que seja efetiva uma vitória: a) que o vencido se veja despojado de qualquer possibilidade de reação; b) que o vencedor não saia tão debilitado da luta, que lhe faltem meios de resolver os mil problemas inerentes ao exercício do poder.

Tendo ascendido ao cargo supremo, cabe a Allende, o presidente reformista, derrubar o empresariado rural, industrial e comercial. Fazê-lo a pau e fogo talvez fosse fácil. Mas disto resultariam descontentamentos profundos, ressentimentos insopitáveis, reações de desespero de alcance incalculável. E um óbvio enfraquecimento do governo.

Então, a verdadeira fórmula para obter sobre os empresários — e também sobre a clara maioria dos chilenos, que é anticomunista — uma vitória sólida, consiste em induzir os próprios descontentes a aceitar as reformas com resignação.

Como criar tal resignação? Uma pessoa só se resigna a um mal quando se persuade da impossibilidade de o evitar, ou quando o prejuízo da aceitação é menor que o da reação. Por exemplo, um proprietário só não expulsa de casa um intruso se reconhece não dispor de meios para isto, ou se receia sofrer, depois da expulsão, alguma vingança terrível.

Assim, convém a Allende incutir nos partidários da propriedade privada ambos os sentimentos: o da impotência para resistir e o do medo de conseqüências piores, em caso de resistência — ainda que legal e pacífica.

A fim de chegar a este duplo resultado é preciso, de um lado, incutir no adversário muito medo do que sucederá se cair Allende. Para isto servem Altamirano e o MIR. E é preciso, de outro lado, obter alguma simpatia do adversário, garantir-lhe que não se lhe tirará tudo, se aceitar de bom grado a derrota etc. Isto também não é difícil. Fá-lo a quinta coluna metida nos meios empresariais. O difícil, o impossível, é desempenhar ao mesmo tempo os papéis de vencedor bicho-papão e de vencedor bonzinho.

Qual a saída? É desempenhar sucessivamente um e outro papel.

Assim, minha leitora vê quanto convém ao comunismo que Allende tome alternativamente os papéis de bicho-papão onipotente, que pode quebrar tudo e todos com um decreto, e de bonzinho, que só quebra pela metade, e que faz uma força terrível contra os que o querem obrigar ao quebra-quebra total.

A pobre vítima, se não perceber o jogo, acabará por defender Allende contra os “quebradores” mais terríveis do que este (Altamirano e o MIR), e por lhe entregar resignadamente metade das penas, para conservar a outra metade.

Poderia estar mais claro o jogo de Allende?

*   *   *

Insistimos sobre os dois instrumentos necessários para que Allende ganhe esta partida.

Antes de tudo, comparsas sanhudos, com ares de estarem prontos para derrubar Allende e fazerem, num só lance, as reformas mais radicais. Esses comparsas são Altamirano e o MIR.

O outro instrumento é a “quinta-coluna” influente na classe vencida, que ajuda o jogo disseminando, de ouvido em ouvido, informações “reservadas”, que apontam Allende como “bom praça”, pesaroso de ser obrigado a perseguir os empresários, e disposto a ser brando nas reformas.

Não é difícil conseguir “Altamiranos”, “MIRs” e “quintas colunas”. A História de todos os tempos o prova.

Napoleão, por exemplo, quis impor aos adversários da Revolução que aceitassem o Estado igualitário gerado por esta. Para tanto, teve quem lhe fizesse o papel de Altamirano. Foi a corrente dos jacobinos (os terroristas do tempo). O corso a continha com pulso de ferro. Se ele caísse, o jacobinismo renasceria. Diante do horror desta perspectiva, a direita se resignava ao demagogo fardado. Pari passu, seus agentes iam cochichando nos salões da nobreza que Napoleão a estimava, e só lhe impunha sacrifícios para não exacerbar os jacobinos. Assim, a direita se resignava a perder mais do que a metade de suas penas…

É claro que nem todo o mundo se deixa enrolar pela manobra. Alguns dentre os vencidos resistem à farsa.

Daí resulta mais uma preciosa vantagem do jogo: divide o adversário. “Divide e impera”, ensinava Maquiavel. Os que se resignam sobrevivem um pouco. Os que não se resignam têm de enfrentar, isolados e enfraquecidos, dura e incerta luta.

Esta tática de dividir o adversário, para o devorar aos poucos — tão favorecida pela comédia que acabo de descrever —, tem um nome. O líder vermelho Rákosi2 a levou, na Hungria, à maior perfeição. Ele a chamou de “tática do salame”. Ninguém come de uma vez um salame inteiro. Cortando-o em pedaços, sim. É até agradável. Assim, os comunistas retalham e devoram seus adversários.

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Mindszenty
Cardeal Joseph Mindszenty

— Qualquer resistência a esse processo é impossível?

— Só a resistência moral, levada a cabo com prestígio e força, pode atrapalhar muita coisa. Disto é prova Mindszenty3, o cardeal-herói.

Terá o Chile algum Mindszenty com ou sem batina? Esperemos. Pois sem heróis nenhum povo de hoje sobrevive… ?

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Notas:

1. MIR: Movimento de Izquierda Revolucionária. Foi um grupo subversivo que apoiou o regime marxista, enfrentando e ameaçando a oposição, praticando numerosos atos terroristas e guerrilheiros, dos quais o presidente chileno dizia discordar, mas impunha-lhe ocasionalmente apenas algumas restrições.

2. Em 1953, depois da morte de Stalin, Matías Rákosi, Secretário Geral do Partido Comunista, dirigiu o governo da Hungria, alegando querer fazer algumas reformas superficiais para evitar uma crise geral, por causa dos enormes crimes ocorridos sob a tirania stalinista. A nova posição não moderava o regime, apenas o tornava mais maquiavélico: exemplo é a “tática do salame” acima descrita.

3. O Cardeal Joseph Mindszenty (1892-1975), Arcebispo Primaz da Hungria, enfrentou em seu país o comunismo, e antes dele o nazismo, e por isto foi duramente perseguido pelos carrascos vermelhos. Sofreu um julgamento iníquo e torturas, em 1948, e foi condenado à prisão perpétua. Esteve preso até o levante anticomunista, em 1956. Quando este foi esmagado, refugiou-se na embaixada norte-americana, em Budapeste, onde esteve 15 anos, até que o Vaticano o fez sair do país, rumo ao Ocidente, em 1971. Perdeu seu cargo de Arcebispo Primaz em 1974 e faleceu em 1975.

Extraído da Revista Catolicismo, agosto de 2003

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