Martírio

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Algumas considerações sobre o martírio. Em que consiste, seus pressupostos, características e efeitos.

Martírio de Santo Estêvão – Annibali Carracci (1603), Museu do Louvre, Paris.

Algumas considerações sobre o martírio

Em face desse sinistro quadro, uma pergunta vem à mente: serão mártires todos os católicos mortos nessas lutas e perseguições?

Para responder a tal pergunta, é útil resumir brevemente aqui a doutrina católica sobre a matéria.

Noção geral

A palavra “mártir” provém do grego e significa “testemunha”. Ela foi empregada nos primeiros tempos do Cristianismo para indicar os Apóstolos e os primeiros discípulos que, tendo presenciado os milagres e a Ressurreição de Jesus, derramaram seu sangue para dar testemunho disso. Posteriormente, o termo foi utilizado num sentido mais amplo, para designar todos os cristãos que preferiram a morte a renegar sua Fé.

Na linguagem eclesiástica, a palavra “martírio” refere-se, pois, ao testemunho da verdade cristã, selada com o sangue, até o sacrifício da própria vida.

Tendo sido Nosso Senhor Jesus Cristo o Mártir por excelência, mártir é todo aquele que, à semelhança de Cristo, dá o testemunho da verdade com a  própria vida. Assim sendo, Santo Estêvão foi o primeiro mártir. “A história de Estêvão é uma repetição da história de Cristo. Ser santo (ou mártir), para os primeiros cristãos, era morrer não só por Ele mas como Ele …. Assim como o batismo significava morrer com Ele e ressurgir para a plenitude da vida eterna, o martírio era o selo de uma total conformidade do santo com Cristo” (1) .

O martírio constitui um ato supremo da virtude da fortaleza e o mais perfeito ato de caridade.

Características

De acordo com os teólogos, três são as condições para que haja verdadeiro martírio:

1 – Que se sofra verdadeiramente a morte corporal.- O mártir é considerado a perfeita testemunha da Fé cristã, aquele que deu a prova absoluta de seu amor a Cristo. Ora, a vida é o maior bem natural do homem. Logo, dar a vida por Cristo é a maior prova de amor a Ele. Aquele que conserva a vida do corpo ainda não demonstrou de modo absoluto que despreza todas as coisas terrenas por amor de Cristo. Assim, antes de ter dado a vida pelo Senhor, ninguém pode ser chamado verdadeiro mártir. Por isso, aqueles que sofreram tormentos por amor a Deus, mas não até a morte, não podem ser chamados mártires no sentido perfeito e completo do termo. A Igreja não chama mártires senão aqueles que morreram por Cristo, e reserva o título de confessores àqueles que sofreram o exílio, a prisão, a perda dos bens, e mesmo a tortura para confessar sua Fé.

2 – Que a morte seja infligida por ódio à verdade cristã.- A verdade da Fé cristã exige não só a adesão interna às doutrinas reveladas, mas também a profissão externa, por meio de palavras e de atos, mediante os quais se demonstra a própria fé. Todos os atos de virtudes, por se reportarem a Deus, são, de algum modo, profissões de fé, pois é através da fé que sabemos que Deus premia alguns atos e castiga outros.

Por isso, não somente a fé pode ser causa do martírio, mas toda virtude, contanto que se relacione com Deus; assim São João Batista é honrado como mártir por haver sustentado os direitos da fidelidade conjugal. Do mesmo modo, São João Nepomuceno foi canonizado como mártir por se recusar a violar o segredo da Confissão; e Santa Maria Goretti, para preservar a pureza.

Requer-se, portanto, que a morte seja infligida por um inimigo da Fé divina ou da virtude cristã. Por conseguinte, não são mártires, no sentido próprio do termo:

a –  aqueles que suportaram a morte em virtude de moléstia contagiosa,  contraída de doentes dos quais tratavam por amor a Deus (estes podem vir a  ser considerados “confessores”);

– os que sofreram a morte na defesa de uma verdade natural;

c – os que sofreram a morte na defesa da heresia.

Também é necessário, da parte do perseguidor, o ódio à Fé ou a toda outra boa obra, desde que ordenada pela Fé de Cristo. E quanto a isso, pouco importa que o perseguidor seja pagão, herege ou mesmo católico; basta que ele inflija a morte por ódio a uma virtude que se pode relacionar com a Fé; assim Santo Estanislau de Cracóvia, São Tomás de Cantuária e São João Nepomuceno foram postos à morte respectivamente por Boleslau, Rei da Polônia, Henrique II da Inglaterra e Wenceslau, Rei da Boêmia, que no entanto eram católicos.

Contudo, não é necessário que o perseguidor reconheça expressamente que age por ódio à fé; basta que este seja seu verdadeiro motivo, mesmo quando ele invocar um outro pretexto. É o que confirma a História, pois Nero começou a perseguição pretextando o incêndio de Roma em 64 dC., que ele atribuía caluniosamente aos cristãos.

3 – Que a morte seja aceita voluntariamente.- Um adulto que é morto durante o sono, por ódio à Fé, normalmente não é verdadeiro mártir. Porém, muitos autores ensinam que um adulto que tenha abandonado tudo para seguir o Senhor, e é morto pelos inimigos da Religião enquanto está dormindo, em ódio à Fé cristã, é verdadeiro mártir, porque em sua entrega total estava implícita a aceitação voluntária de tudo o que viesse em conseqüência dessa entrega, inclusive a morte.

Na aceitação voluntária da morte está compreendida a ausência de resistência. Pois se a pessoa se defende, pode ser que tenha querido salvar a vida, não entregá-la. Defender a própria vida é legítimo (e em muitos casos é até obrigatório), mas não caracteriza o martírio.

Essa exigência faz levantar uma pergunta: se o soldado que morre numa guerra em defesa da Fé pode ser considerado mártir. Santo Tomás de Aquino parece indicar que se pode considerar como mártir o soldado que morre em uma guerra movida para a defesa da Fé.  Para que haja martírio, entretanto, é necessário uma guerra entre fiéis e infiéis, não por motivos políticos, mas por causa da Religião; então aqueles que lutam em prol da Religião católica, contra os infiéis, morrem mártires, porque a morte lhes é infligida por ódio à Fé . E sua resistência não é um obstáculo a seu título de mártir, porque, dizem os teólogos, eles lutaram primariamente não para defender suas vidas, mas por causa da Igreja e da verdadeira Fé contra os adversários de Cristo; eles não defendem sua vida senão secundariamente, na medida em que esta é necessária à Igreja e à Fé cristã.

Pode uma criança, ainda não dotada do pleno uso da razão, ser mártir? A resposta é positiva. Para que sejam mártires, basta que sejam mortas por Cristo, e isso mesmo no seio materno. Nesse sentido, convém lembrar o caso célebre dos Santos Inocentes, que a Igreja sempre honrou como mártires.

Nas causas de beatificação e canonização dos mártires são examinados todos esses elementos. Uma vez que eles sejam comprovados, fica dispensado o exame de heroicidade das virtudes e, algumas vezes, também a prova complementar dos milagres.

Eficácia e efeitos do martírio

1 – Justifica o pecador. – O martírio confere o estado de graça ao pecador, seja ele adulto ou criança. Para o adulto, entretanto, é preciso que venha unido pelo menos a uma atrição ou contrição imperfeita dos pecados cometidos. Na aceitação voluntária da morte por amor de Deus ou da virtude já está implícita a dor pelos pecados.

Pessoas adultas não batizadas, mortas por ódio à Fé, são igualmente justificadas e vão para o Céu.

Explica-se isso porque  o martírio supre o batismo de água e produz os mesmos efeitos: apaga o pecado original, e os pecados atuais quanto à culpa e à pena. É o chamado “batismo de sangue” (cfr. Mt 10, 32 e 39). Entretanto, se o adulto é catecúmeno (em fase de preparação para ser batizado), ele deve, tanto quanto possível, receber o batismo de água antes do martírio.

Se se trata de um adulto já batizado, deve ele, se possível, confessar seus pecados a um padre, ou pelo menos lamentá-los e receber a Sagrada Comunhão, porque esses preceitos obrigam, em decorrência do direito divino, no momento da morte, e o mártir não pode ser dispensado. Ressaltamos que isso é requerido só quando há possibilidade, ou seja, no caso em que já se prevê o martírio e existem condições de se preparar para ele. Por exemplo, antes de ir a uma batalha, numa guerra de Religião.

2 – Destrói a culpa venial e a pena temporal de todos os pecados – Sendo um perfeito ato de caridade, o martírio destrói nos justos (ou seja, nos que estão em estado de graça) toda a culpa venial e toda a pena temporal devida pelos pecados passados. Por isso, todos os mártires entram imediatamente no Céu, sem passar pelo Purgatório.

3 – Produz um aumento na graça e na glória – O martírio confere ainda aos justos um aumento notável na graça e na glória.

4 –  Merece especial recompensa no Céu – Por fim, o martírio merece uma recompensa especial no Paraíso celeste, a que Santo Tomás chama uma alegria, um prêmio privilegiado, correspondente a uma privilegiada vitória.

Martírio espontâneo

Sendo o martírio um ato de virtude, é louvável oferecer-se espontaneamente para ser martirizado? Como explicar que a Igreja tenha visto nessa atitude uma pretensão e um perigo?

A razão dada pela Igreja é que não é permitido oferecer aos outros a ocasião de agir com injustiça; seria um pecado de cumplicidade. Entretanto, a Igreja aceitava como martírio esse fato quando se tratava daqueles que tinham tido a fraqueza de abjurar a Fé e queriam reparar sua falta. Os teólogos admitem que uma especial inspiração do Espírito Santo pode explicar essa iniciativa, assim como muitas outras causas, entre as quais Santo Tomás cita o zelo pela fé e a caridade fraterna.

São Gregório Nazianzeno resume numa sentença a regra a ser seguida nesses casos: procurar a morte é mera temeridade, mas recusá-la é covardia.

Tendo isso em vista, pode-se habitualmente desejar o martírio e pedi-lo a Deus? A resposta é que o próprio Nosso Senhor nos encorajou a isso. Por outro lado, os teólogos não têm trabalho nenhum em demonstrar que o desejo do martírio não compreende de nenhum modo a aceitação do pecado cometido pelo perseguidor, nem a menor cumplicidade com ele.

Em sentido contrário, é lícito fugir da ocasião de martírio? Sim, dizem os teólogos, e também disso nos deu exemplo Nosso Senhor Jesus Cristo fugindo dos fariseus, quando queriam apedrejá-Lo. Em certas circunstâncias, uma fuga dessas não pode, de nenhum modo, ser assimilada a uma negação da Fé; é mais bem uma confissão virtual, pois que é a aceitação de grandes males, como o exílio, por apego à Fé. Entretanto, os Bispos e aqueles que têm o encargo de almas não podem fugir, se sua fuga importa no risco de provocar a dispersão do rebanho.

Não se pode também provocar os perseguidores. Por isso é que quebrar ídolos foi condenado pelo Concílio de Elvira (ano 306). A provocação é lícita, caso pareça que ela venha de uma inspiração do Espírito Santo, ou se as circunstâncias mostrarem que o servidor de Deus devia agir desse modo pelo bem da fé e da Religião, ou por mandado da autoridade pública.

Martírio de Santo Inácio de Antioquia

Exemplo de um grande Santo

Sobre o desejar o martírio e mesmo procurá-lo, convém lembrar o  magnífico exemplo de Santo Inácio de Antioquia, no século II, discípulo de São João Evangelista. Estando preso em Roma para ser executado, soube que cristãos eminentes tentavam libertá-lo e estavam rezando nessa intenção. Escreveu-lhes então no sentido de que desistissem de tal intento, estas belas palavras: “Peço-lhes que não dispensem uma bondade inoportuna em meu favor. Deixem que eu seja devorado pelas feras, através das quais chegarei à presença de Deus. Eu sou o trigo de Deus e é preciso que eu seja triturado pelos dentes dos animais selvagens para tornar-me puro pão de Cristo” (2). O que realmente se realizou.

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Não poderíamos terminar este artigo sem externar uma lamentação: o Coliseu, local do martírio de tantos cristãos, verdadeira relíquia da Cristandade, foi recentemente restaurado e reaberto… para espetáculos! Esse imponente monumento romano, erigido pelo Imperador Tito por volta do ano 80 dC., assistirá agora a outra sorte de espetáculos; não mais os proporcionados pelos milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram as feras, derramando seu sangue por Cristo, mas por artistas de teatro encenando peças mundanas… (3)

Notas:

1 – Kenneth L. Woodward, A Fábrica de Santos, Editora Siciliano, 1992, p. 53.

2 – Kenneth L. Woodward, op. cit., p. 53.

3 – Cfr. “Folha de S. Paulo”,  20-7-00.

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Outras obras consultadas:

– The Catholic Encyclopedia, verbete “martyr”, p. 736 e ss.

– Dictionnaire de Théologie Catholique, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1928, tomo X, verbete “Martyre”, p. 221.- La Grande Encyclopédie, Paris, Société Anonyme de la Grande Encyclopédie, tomo XXIII, verbete “Martyr”, E-H.V., pp. 350-351.

– Les Petits Bollandistes, Bloud et Barral, Paris, 1882, tomo II, pp. 165.

– Dizionario di Teologia Morale, Francesco Roberti-Pietro Palazzini,
Editrice Studium, Roma, 1957, verbete “Martirio”.

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