Deus de Amor e o inferno eterno: e agora?

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Naquele dia na faculdade, a sala de aula do curso de filosofia estava repleta. Raramente encontravam-se tantos alunos presentes.

O professor percebeu a oportunidade única de fazer algumas provocações didáticas diante de uma audiência tão numerosa. Seu plano consistia em chamar a atenção para conseguir um possível aumento de frequência daqueles estudantes na sua tão boicotada matéria.

Nada melhor do que lançar algumas flechas contra a religião, desviando a filosofia um tanto para o lado da teologia.

– Digam-me – começou o mestre – como pode um Deus que é todo amor, segundo os cristãos, condenar ao inferno por toda a eternidade, uma criatura sua, alguém feito a sua imagem e semelhança? Não acham isso um absurdo?

Um silêncio desconcertante dominou a sala. Obviamente, alguns alunos sentiram o ataque e não concordaram. Mas como enfrentar a questão espinhosa? Como ninguém se manifestou, continuou o professor:

– Deve haver algum crente em Deus aqui capaz nos ajudar nesta dificuldade. Lembrem-se, esse absurdo é ensinado pelo cristianismo…

Renato – um jovem de 20 anos, já veterano na faculdade – levantou a mão e disse:

– Professor, com todo respeito, sua objeção só revela desconhecimento em matéria de teologia cristã.

A modorra entre os alunos começou a desaparecer. Quem não gosta de discussões em sala de aula? A pronta atitude de Renato não tinha sido algo inconsequente. Era um católico praticante e tinha estudado, por conta própria, filosofia tomista. Estava preparado para entrar no assunto, mas havia outro problema aí…

O professor, que sabia o que seu aluno gostava de estudar, respondeu:

– Muito bem, Renato. Sei que você andou lendo a Suma Teológica de Tomás de Aquino. Não venha me dizer que você vai nos dar uma explicação daqueles conceitos aristotélico-tomistas como os das quatro causas, ato e potência, ser e essência e todos esses célebres… “artifícios” medievais!

Aí estava o problema! Renato sabia muito bem que levantar pontos tão abstratos não funcionaria diante de colegas desinteressados pelo raciocínio estruturado e metódico. Era preciso uma tática adequada ao público.

– Professor – disse Renato –, esses “artifícios”, para usar sua expressão, são muito válidos, mas posso responder sua objeção sem recorrer a eles.

Agora o jogo havia mudado. Quem estava desafiando era o aluno. O professor percebeu o cutucão. Realmente, as abstrações da filosofia medieval seriam um tanto árduas para aquela turma. Se Renato tentasse usá-las, com certeza não convenceria ninguém. Mas o rapaz vinha propondo algo diferente.

Com um sorriso discreto nos lábios, o professor dirigiu-se a sua mesa, sentou-se na cadeira e disse:

– Por favor, Renato, venha aqui à frente e nos dê sua explicação, sem os “artifícios” medievais.

– Com todo gosto, professor, apenas peço para não ser interrompido até concluir a argumentação!

– Certo! Deixarei você falar, desde que não diga nenhuma bobagem!

O rapaz se pôs de pé diante da turma e lançou uma premissa direta:

– O verdadeiro amor só pode ser livre. Amor “obrigatório”, “forçado” não é amor!

Afirmação contundente e irretorquível. Mas, e daí?

Renato, conduzindo a argumentação para dentro da vida quotidiana dos seus colegas, continuou:

– Vamos tomar como exemplo algo que todos nós, estudantes, vivenciamos: um colega aqui quer namorar com uma das alunas da nossa turma!

Com isso, Renato mexia com todos os alunos. Sabia que seus companheiros de classe já haviam vivenciado esse tipo de acontecimento! A solidez da tática residia nisso: trazer os colegas para dentro do problema, fazendo-os sentir na própria pele o exemplo, atraindo sua atenção.

Continuou o jovem, com perspicácia:

– O que esse aluno apaixonado faz para conquistar sua colega? Tenta conversar com ela, trata com gentileza, aproxima-se em todas as ocasiões oportunas, manda mensagens, flores… e por aí vai!

Todos os estudantes estavam intrigados pela exposição. O professor procurava fingir desinteresse, apoiava o cotovelo na mesa, descansando preguiçosamente a cabeça sobre a própria mão. Mas permanecia atento.

Renato prosseguiu:

– Mas… e isso acontece muitas vezes… ela não está interessada no pobre rapaz. E agora … desculpe, não quero deixar ninguém aqui constrangido… Mas estou percebendo alguns dos meus colegas se remexendo nas cadeiras! E muito provavelmente algumas de minhas colegas aqui estão pensando: “Exatamente, tem um desses aqui bem do meu lado e ele não me deixa em paz!”.

Todos deram risada. A realidade mordia! O professor não resistiu:

– Renato! Estamos perdendo tempo!

– Professor – retrucou o aluno –, sei que o senhor já percebeu onde vou chegar. Peço apenas um pouco de paciência.

E prosseguiu:

– Nosso colega apaixonado continua tentando convencer a moça de namorar com ele. Mas ela continua rejeitando-o! Aí, se ela não está interessada, qual deve ser a atitude do rapaz? Se ele realmente a ama, depois de tantas tentativas frustradas, o que ele deve fazer?

A classe permaneceu quieta, alguns se entreolhavam. Mas a conclusão dada por Renato era inevitável:

– Claro que ele não pode forçar que ela o ame! Pois só há verdadeiro amor quando este é livre! Ele não pode, repito, obrigar que ela o ame. Logo, se esse aluno verdadeiramente ama sua colega, a única atitude que lhe resta será… afastar-se dela!

Alguns estudantes ainda estavam meio surpreendidos com o propósito daquele exemplo, coçavam a cabeça… Então Renato, com ar bem tranquilo, disse:

– Assim age Deus! Vejam… Deus continuamente nos manda mensagens, flores, benefícios, graças etc. para que nós nos voltemos para Ele, para que nós aceitemos seu amor! Mas Deus nos ama tanto que Ele não pode nos forçar a amá-lO, contra nossa vontade! Ele nos deu a liberdade para que nós o amássemos livremente. Só assim há verdadeiro amor.

Nesse ponto, o professor já tinha tomado uma posição ereta na sua cadeira, pôs as mãos juntas sobre a mesa e os dedos cruzados.

Renato continuou discorrendo os argumentos numa sequência inelutável:

– Então, se Deus não pode obrigar o amor, Ele não forçará ninguém a estar com Ele eternamente no Céu. Se uma pessoa continuamente rejeita Deus, Ele não vai obrigar essa pessoa a amá-lo, quer dizer, estar para sempre no Céu ao lado dEle. Deus vai afastar-se dessa pessoa. Aliás, em essência, o inferno é o afastamento completo de Deus.

Por fim, Renato deu o golpe final, voltando contra o mestre sua própria objeção inicial:

– Se, como disse o professor, Deus é verdadeiramente todo amor, Ele não pode forçar ninguém a amá-lO. Se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, conforme também disse o professor, o homem tem de ser livre para amar a Deus. A liberdade é uma das imagens e semelhanças de Deus no homem.

Renato já ia voltando lentamente para seu lugar, quando disse a última frase:

– Concluindo… o fato de Deus ser todo amor e de ter dado sua semelhança e imagem ao homem é justamente o que torna possível o homem rejeitá-lO e, como consequência, escolher ir para o inferno por toda a eternidade.

Os alunos começaram a cochichar por toda a sala. O professor se levantou e disse:

– Encerramos a aula mais cedo hoje, vocês estão dispensados. Renato, quero falar contigo um pouco.

Enquanto os estudantes iam deixando a sala de aula, o jovem se aproximou do professor, que lhe disse:

– Não se sinta tão vitorioso, meu amigo! Você sabe muito bem que isso que você disse dá margem a um montão de perguntas e outros problemas.

– Concordo, professor. Apenas respondi sua primeira objeção. Se há outras questões, podemos discutir na próxima aula e, claro, na presença dos meus colegas.

– Certo, vamos ver… Até mais, Renato.

– Até logo, professor!

Renato esperou o professor sair da sala. Estava meio cético se o mestre lançaria outro desafio contra a religião. Pegou seu caderno e se retirou.

Ao menos em algo o professor saiu ganhando: conseguiu a atenção de seus alunos. Provavelmente eles iriam voltar em grande número na próxima aula, para assistirem a outro debate com Renato.

* * *

Caro leitor, a descrição acima foi criada para ilustrar uma resposta dada pelo apologeta Dr. Frank Turek na Universidade do Texas em Dallas, Estados Unidos. Veja o vídeo em: https://youtu.be/XjHhtWL_3Og

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Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília, professor de apologética, conferencista, articulista e polemista Católico, um dos primeiros colaboradores do site lepanto.com.br e discípulo de Plínio Corrêa de Oliveira.

2 COMENTÁRIOS

  1. No inicio dos anos 50 num seminário perguntei a um padre por que Deus Infinito cometia injustiças? O padre pensou um pouco e respondeu: Deus não é para ser entendido, apenas adorado. Um paradoxo inexplicado. Passei a ser um católico de nome (como alguém pode ir para o inferno se não confessa a um padre?). No anos 90 resolvi entender o tal paradoxo e descobri que a resposta do padre estava certa, as bobagens observadas não eram de Deus, mas dos homens, principalmente quando avançam intelectualmente (e não moralmente). Deus não precisa do amor de ninguém (ou não seria Deus), nós é eventualmente precisamos de amá-lo, mas de forma racional, não dogmaticamente irracional. arioba

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