Reformador da Sociedade. Esse Doutor da Igreja, Príncipe dos Moralistas, realizou, ainda como jovem sacerdote, obra de verdadeira assistência espiritual e material aos pobres, exemplar para nossa desorientada época.
Tendo já Catolicismo apresentado uma biografia desse admirável Santo, em sua edição de agosto de 1996, focalizaremos neste artigo apenas uma de suas iniciativas pouco conhecida, quando ainda bem moço, pela relevância que alcançou na sociedade napolitana do século XVIII.
Santo Afonso, cuja festa comemoramos no dia 1º deste mês, recuperou a parte mais abandonada e fora da lei da sociedade de Nápoles. Seu modo de agir fornece um modelo para nossos dias de verdadeira ação regeneradora desse segmento especialmente transviado da sociedade. Regeneração esta que, repercutindo depois, gradativamente, nos demais segmentos, poderá em boa medida restaurar o organismo social.
Procura-se empenhadamente um remédio para a sociedade atual que enfrenta toda sorte de crises, por se afastar cada vez mais de Deus e de sua moral. Mas qualquer solução que se busque será vã, caso não seja sanada a grave crise religiosa, responsável maior pela decadência da sociedade e, conseqüentemente, por toda série de crimes e desmandos. Bem o demonstra, como veremos, o exemplo da vida de Santo Afonso.
Eliminada a revolta, caminho do Céu
A fama que Afonso granjeara como jovem advogado cresceu quando ele, apenas ordenado sacerdote, começou a pregar. Sua presença era disputada nos mais influentes púlpitos de Nápoles. E, nesta ocasião, ele descobriu um mundo novo nos arrabaldes pobres da capital, onde viviam os “lazzaroni”, mergulhados na miséria, na preguiça, no vício e, muitas vezes, no crime.
Aqueles pobres, pouco assistidos espiritual e materialmente, Afonso os tratou com desvelo especial, praticando em seu meio exímia caridade. Não para neles incitar o espírito de luta de classes, de reivindicações, de “direitos” e de revolta, mas para mostrar-lhes que o caminho do Céu também a eles estava aberto caso se convertessem.
Afonso, como também Januário Sanelli, um de seus primeiros auxiliares nesta tarefa, descobriu que, sob a aparência rude e até mesmo repugnante de muitos desses párias, havia “um natural terno e docílimo que — é bem verdade — posto em ocasião, caía em excessos de maldade”. Mas que, do mesmo modo, “quando lhe é proposto adequadamente o bem, a ele se entrega”1. O quadro é o mesmo de hoje em dia, pois gente entregue às drogas, ao crime, ao vício, teria tomado um caminho inteiramente oposto se tivesse encontrado, no lar ou na igreja, os bons conselhos que podem marcar uma vida.
Mal ele aparecia no bairro, espontaneamente uma multidão formava-se ao redor de Afonso: barbeiros, pedreiros, carpinteiros, fabricantes de sabão, cardadores de lã, feirantes — todos deixavam sua ocupação para ouvir o missionário.
Do nó da forca a um laço de caridade
Com o tempo, Afonso foi escolhendo os melhores de seus ouvintes para transformá-los em apóstolos no seu meio. Por exemplo, Pedro Barbarese, que ouvindo um sermão do santo, caiu a seus pés e fez uma confissão geral. Tornou-se depois um de seus mais eficientes auxiliares.
Outro foi Lucas Nardone. Velho soldado revoltado e licencioso, por pouco escapara à forca. A Providência levou-o aos pés de Afonso. “Esse homem destinado ao nó da forca tornar-se-á um laço de amor para arrebatar as almas do inferno e atraí-las a Jesus Cristo”2.
O vendedor de livros velhos Bartolomeu D’Auria e o ceramista José Chianese levaram tão a sério os ensinamentos do jovem sacerdote, que eram tidos como verdadeiros santos por seus conterrâneos. Havia também José, o Santo, como era chamado um velho negociante de farinha, venerado por todo o mercado. A dois outros — o vendedor de ovos Antônio Pennino, e o de alcaparras Leonardo Cristiano — serão atribuídos milagres em vida e após a morte.
“Quem não reza se condena”
Como obtinha Afonso tanto fruto nesse apostolado com gente tão rude e simples?
Sabia ele que todos somos chamados, em grau maior ou menor, a ser santos. Assim, qualquer alma redimida pelo batismo, tornando-se pela graça templo do Espírito Santo, possui em potência o indispensável para atingir a santidade. Por outro lado, Afonso tinha ciência de que só as orações vocais e atos externos de piedade dificilmente levam à santificação, se não são acompanhados por uma intensa vida de piedade interior. Se as orações vocais são boas, a oração mental é necessária para o progresso na virtude. Pois coloca a alma constantemente na presença de Deus e da insuficiência própria, ilumina-a a respeito das perfeições de Deus e das limitações e defeitos próprios.
Sua idéia central: “Quem reza se salva; quem não reza se condena. Todos os que se salvaram, salvaram-se pela oração; todos os que se condenaram, condenaram-se por falta de oração”3 .
No início, Afonso reunia seu povinho nas praças públicas. Algumas vezes o fazia em frente ao convento dos Mínimos. Naquele tempo em que muitos procuravam pescar em águas turvas, havia muita vigilância quanto à ortodoxia. Certo dia, Afonso fazia uma amigável censura a um operário que, movido por zelo imoderado, começou a viver só de ervas e raízes, não levando em consideração que tinha de conservar as forças para o trabalho e sustento da família. Um dos colaboradores de Afonso comentou, meio jocosamente: “Deus quer que a gente coma. E se lhe derem quatro costeletas, faça bom proveito!” Ora, um frade que, do convento, estava à espreita de alguma novidade, ouvindo essa frase inofensiva, logo se assustou. “Deve ser uma seita de sibaritas4, ou mesmo de molinistas”5 — pensou.
O Cardeal e o prefeito de polícia foram alertados, e planejaram para o dia seguinte uma batida no local. Afonso, tomando conhecimento do fato, prudentemente fez correr a palavra entre o povinho para não comparecer. Mas entre os não avisados estavam exatamente Nardone e Barbarese, que foram presos com mais alguns. Quando o prefeito soube que aquela obra era empreendida pelo Pe. Afonso, tudo se esclareceu. E mais edificado ficou quando, ouvindo a campainha tocar, acompanhando o Santíssimo que era levado a algum doente, os dois indiciados correram ao balcão, adoraram profundamente de joelhos a Hóstia consagrada e suplicaram licença para juntar-se ao cortejo.
Capelas da noite: eficaz método apostólico
O Cardeal louvou Afonso pelo trabalho que fazia, mas recomendou-lhe que evitasse os lugares públicos. Ofereceu-lhe, para isso, as capelas e oratórios da cidade. O que veio a dar à instituição o nome pelo qual ficou conhecida por mais de dois séculos: Cappelle serotine (Capelas da noite). Ofereceu também a ele assistência religiosa para seus dirigidos.
Por que Capelas da noite? Sendo todos seus membros trabalhadores, só tinham as noites livres para comparecer às pregações e atos de piedade. E só homens, porque as mulheres, com todos os afazeres dos lares numerosos daquela época, não tinham tempo livre senão para correr de vez em quando à igreja.
Aos domingos pela manhã, dirigidos por um sacerdote, todos, até os menos capazes e analfabetos, faziam meia hora de meditação sobre a Paixão. Em seguida assistiam à Santa Missa após cuidadosa preparação, seguida de comunhão e fervorosa ação de graças. Algumas vezes assistiam a outras Missas com o Santíssimo Sacramento exposto, segundo tradição da época. À tarde, reunião geral na igreja para visitas ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Depois, Vésperas, cantadas por todos. Visitavam ainda o Hospital dos Incuráveis para levar alívio moral aos doentes, e terminavam seus atos de piedade com a bênção do Santíssimo Sacramento. Havia também um período para espairecimento nos campos circunvizinhos, na primavera, ou no claustro de algum convento durante o inverno6.
Um movimento de restauração social
As cappelle serotine progrediram “com tal pujança, e manifestaram seus associados tanto empenho proselitista, que 60 anos depois, quando Afonso passou à eternidade, funcionava uma rede de 75 centros nos diversos bairros da capital, sob a presidência de um chefe local [leigo] e de um sacerdote conselheiro”7.
Houve assim uma mudança radical entre os “lazzaroni”: “Esses grupos tornaram-se um movimento de restauração social e de saneamento dos costumes; […] a pilhagem foi substituída pelo trabalho; punhais e pistolas, depositadas nas mãos dos sacerdotes e substituídos por terços e opúsculos de meditação sobre as Máximas Eternas [compostos por Afonso especialmente para esse público] ou a Paixão de Jesus Cristo”8.
Essas cappelle serotine continuaram sua existência até o início do século XX, só se extinguindo com o excesso de industrialização e de obrigações da vida moderna, como também pela falta de sacerdotes com o espírito do grande Doutor da Igreja.
Notas:
1.G. Sarnelli, Ragioni per che siano separate le meretrice, p. 29. apud Raimundo Telleria, C.SS.R., San Alfonso Maria de Ligorio – Fundador, Obispo Y Doctor, Editorial El Perpetuo Socorro, Madrid, 1950, tomo I, p. 121.
2.Théodule Rey-Mermet, C.SS.R. AFONSO DE LIGÓRIO – Uma opção pelos abandonados,Editora Santuário Aparecida _ São Paulo, 1984, p. 191.
3.Id., p. 184.
4.“Diz-se de pessoa dada à indolência ou à vida de prazeres, por alusão aos antigos habitantes de Síbaris, famosos por sua riqueza e voluptuosidade” (Novo Aurélio, versão 3).
5.Temerariamente, pelo menos, “o Pe. Miguel de Molinos (1628-1696)afirmou em uma obra que certos atos externos imorais não manchavam a alma dos perfeitos; absortos em Deus, `eles estariam acima de tudo isso'”. Rey-Mermet, op. cit., p.192.
6.Théodule Rey-Mermet, op. cit., p. 195.
7.Telleria, op. cit., p. 123.
8.Théodule Rey-Mermet, op. cit., p. 196.
Artigo oferecido pela Revista Catolicismo