“Nemo summum fit repente” (nada de importante ocorre de repente), diz o adágio latino, que bem pode ser aplicado ao surgimento de grandes personalidades. Estas são como picos do Himalaia, tendo em sua base e a seu lado outros tantos cimos fabulosos. Assim também com Carlos Magno e sua família.
A família de Carlos era desde os fins do século VI rica e influente, fornecendo sucessivos Prefeitos do Paço aos reis da dinastia merovíngia — uma espécie de ministros plenipotenciários, enquanto o monarca ocupava uma função meramente protocolar.
Justo, digno e equitativo, aliava aos gostos de um nobre as qualidades de um homem de Estado. Preceptor do futuro rei Dagoberto, fez deste um rei justo, “le bon Roi Dagobert”, como evoca ainda hoje uma graciosa canção infantil francesa.
Casado, aspirava entretanto a uma vida de recolhimento e oração; de Ansegisel, seu filho primogênito, descende Carlos Magno em linha direta.
Depois de 12 anos servindo na Corte, Arnolfo foi nomeado — para sua grande consternação — para a Sé episcopal de Metz, cujo bispo acabara de morrer.
Embora leigo, não teve como recusar. Ordenado e sagrado Bispo de Metz, governou a diocese durante mais de uma década, retirando-se afinal para levar a vida de recolhimento a que sempre aspirou. Faleceu no dia 18 de julho de 641; seus restos mortais repousam na catedral de Metz.
Na linhagem direta de Santo Arnolfo figuram Santo Hugo, arcebispo de Rouen, e seu irmão Carlos Martel, o martelo vencedor dos muçulmanos na batalha de Poitiers, em outubro de 73.
Essa vitória que, pondo freio ao avanço muçulmano na Europa Ocidental, representou um contributo importante para a obra de seu neto, Carlos Magno, rumo à formação de uma Europa cristã na alta Idade Média.
Neste sentido escrevia em 1788 o historiador britânico Edward Gibbon que, sem o Martelo Franco, muito provavelmente os sarracenos teriam chegado “às fronteiras da Polônia e às terras altas da Escócia; a frota árabe teria subido sem lutas o Tâmisa e em Oxford se ensinaria a interpretação do Corão”.
Jacob Burckhardt, historiador alemão, referia-se em 1880 a Carlos Martel como “o grande fundador de uma Cristandade ocidental que impediu que a bandeira do profeta (Maomé) balançasse durante séculos nas torres da França”. (Cfr. Helene Zuber, Razzia in Gallien, Spiegel Geschichte 6, 2012).
Carlos Martel teve três filhos: Carlomano, Pepino e Grifo, este último oriundo de seu segundo casamento. No ano de 737, quando seu primogênito tinha cerca de 20 anos, toma uma decisão que teria no futuro um resultado importante: deixa vacante o trono dos francos quando da morte do rei Teodorico IV.
Após a morte de Carlos Martel, no outono de 741, Carlomano e Pepino tomam o poder como Prefeitos do Paço e alijam dele seu irmão mais novo, mandando-o para um mosteiro.
Carlomano fica com a Austrásia, a Alamânia e a Turíngia, enquanto Pepino passa a governar a Neustrásia, a Borgonha e a Provença.
Em 743 ambos os irmãos resolvem instalar novamente um rei da dinastia merovíngia, Childerico III, que lhes legitimasse o governo.
Nos anos seguintes empreendem campanhas militares na Aquitânia, Alamânia e Baviera, consolidando sua posição nas partes extremas do reino. Ao mesmo tempo desejam reformar lamentáveis relaxamentos existentes no povo e no clero.
Assim, em 743 Carlomano convoca, com a participação de São Bonifácio, o Concilio Germânico, ocasião em que este santo, escrevendo ao Papa, traça um quadro dramático da situação moral da época:
“No momento as sedes das cidades episcopais encontram-se em grande parte entregues a leigos gananciosos e intrusos, a clérigos que se estadeiam na luxúria e se dedicam a ganhar dinheiro para o gozo mundano”.
E mais adiante fala dos padres “que têm quatro, cinco ou mais concubinas na cama, mas que não se coram nem se pejam de ler o Evangelho”.
Pepino, por sua vez, convoca um sínodo de bispos na velha cidade real de Soissons, com a recomendação aos sacerdotes de seu reino de não hospedarem mulheres em suas casas, com exceção de suas mães, irmãs e sobrinhas.
No ano de 747, depois de seis anos de governo conjunto, Carlomano surpreende os francos com uma notícia sensacional: resolvera deixar o cargo de Prefeito do Paço para se retirar a um convento, o de Montecassino, na Itália.
Não se sabe ao certo se essa foi uma decisão forçada por seu irmão Pepino ou se resultou de a um movimento da graça divina. Fato é que Pepino tornou-se o único Prefeito do Paço no reino dos francos sob Childerico III.
Ao contrário de Carlomano, que tinha filhos, o casamento de Pepino com a rica condessa Bertrada ainda não frutificara. Depois de muitas orações, no dia 2 de abril de 748 Bertrada dá à luz a um menino, batizando-o com o nome de Carlos. Estava garantida a sucessão.
Três anos mais tarde, Pepino toma uma atitude mais ousada. Em novembro de 751, com o apoio do Papa São Zacarias, reúne os grandes do Reino em Soissons, onde se faz aclamar Rex Francorum separadamente pelos nobres e pelo povo.
Pepino, exercendo seu cargo de Prefeito do Paço, almejava o título de Rei. O poder de fato estava desde há mais de um século nas mãos dos Prefeitos carolíngios do Palácio.
A legitimação para a tomada do título de Rei foi dada a Pepino pelo Papa Zacarias, a quem Pepino enviou seus mais importantes conselheiros, Fulrado de Saint Denis, e o bispo Burkhard, de Würzburg, com a pergunta se era bom que entre os francos houvesse reis “que não tinham poder enquanto reis”.
A resposta do Papa foi: “É melhor designar como Rei aquele que tem o poder”.
São Zacarias foi o último Papa de origem grega. Além de dar grande apoio ao apostolado de São Bonifácio — o Apostolus germanorum —, estabeleceu e fortaleceu as relações da dinastia carolíngia com o Papado.
Em seguida, no ponto alto de uma cerimônia religiosa, ungem-no os bispos com os santos óleos. Quanto a Childerico, o último rei da dinastia de Clóvis, é enviado com o cabelo cortado curto — sinal da perda de sua dignidade real, segundo os costumes merovíngios — juntamente com seu filho Teodorico, para o mosteiro de Prüm.
Neste mesmo ano de 751, Aistolfo, rei dos lombardos, conquista Ravena, a antiga capital do Império Romano, das mãos dos bizantinos, e no ano seguinte passa a acossar o Papa — então Estêvão II — e a exigir dele o reconhecimento de sua soberania sobre os territórios conquistados.
Abandonado pelo Imperador Romano de Constantinopla, Estevão II solicita ajuda contra os lombardos a Pepino, com quem se encontra na cidade de Ponthion, no reino Franco.
Em consequência das conversações, entre os dois surge uma aliança transalpina que marcará o horizonte político de toda a Idade Média.
No dia 28 de julho do mesmo ano, na Basílica de Saint-Denis, o Papa unge de novo Pepino, juntamente com seus filhos Carlos (747-814) e Carlomano (751-771).
Estabelecido o acordo com o Papa Estêvão II, Pepino rompe a aliança com os lombardos e se dirige militarmente contra eles. Cercado em sua capital Pavia, Aistolfo mostra-se inicialmente conciliatório, mas tão logo Pepino se retira, ataca novamente o Papa em Roma.
O rei dos Francos retorna em 756, derrota os lombardos e obriga Aistolfo a reconhecer o domínio franco, bem como a ceder ao Papa o Exarcado de Ravena, composto pelas cidades de Istria, Veneza, Ferrara, Ravena, Pentápolis e Perugia.
Essa famosa “doação de Pepino”, confirmada e aumentada por seu filho Carlos Magno em 774, constituiu os Estados Pontifícios ou Patrimônio de São Pedro.
Pepino, o Breve, empreendeu ainda guerras bem-sucedidas contra os saxões e os sarracenos, arrebatando a estes a cidade de Narbonne e expulsando-os para além dos Pirineus.
Em 757, o duque Tassilo II da Baviera prestou-lhe juramento de vassalagem. Nos anos seguintes Pepino vai se dedicar à conquista da Aquitânia, o que terá grande importância na futura formação da França.
Antes de sua morte no ano de 768, Pepino dividiu o reino entre seus filhos Carlos e Carlomano. Seus restos mortais foram sepultados na Catedral de Saint-Denis, nos arredores de Paris.
Em agosto de 1793, no auge das insânias da Revolução Francesa, um bando de sans-culottes profanou seu túmulo e jogou seus restos mortais numa vala comum.
Ao primogênito Carlos, já experiente nos assuntos do governo apesar de ter apenas 20 anos, coube reinar na Turíngia, na Frísia, na Gasconha, na Nêustria e nas regiões francas entre os rios Loire e Schelde.
Carlomano tinha apenas 17 anos quando começou a governar a parte central do reino: a Provença, o Languedoc, o maciço central, a Alsácia, a Alamânia e a região ao sul de Paris.
Quanto à parte norte da Austrásia, bem como à região dos rios Maas, Mosela e Reno, berço dos carolíngios, e a Aquitânia, foram elas divididas entre os dois irmãos.
As capitais de ambos os territórios eram Noyon e Soissons, distantes uma da outra cerca de 30 km, onde os dois irmãos se fizeram aclamar em 9 de outubro de 768.
Carlomano reinava sobre um bloco mais compacto; por sua vez, as regiões que estavam sob o governo de Carlos eram mais ricas.
Embora Eginhardo assevere que as relações entre os dois irmãos tenham sido inicialmente harmônicas, é inegável que elas se esfriaram pouco depois, quando o duque Hunald se sublevou na Aquitânia, ao saber da morte de Pepino, o Breve.
Carlos solicitou o apoio do irmão para dominar a sublevação e encontrou uma firme recusa de Carlomano em lhe apoiar a expedição militar, aliás vitoriosa.
Tal recusa enfureceu Carlos, pois a seus olhos mais se parecia a uma fuga diante do adversário. Era previsível um entrechoque entre os irmãos, com graves consequências para o reino franco.
Esse perigo se afastou com a morte inesperada de Carlomano, após curto período de doença, no dia 4 de dezembro de 771. Com ela se esfumaçou o pesadelo de uma guerra fratricida.
continua no próximo post: Grandes guerras de Carlos Magno