O leitor imagine um rio que, após partir de suas nascentes, vai se avolumando, tem peixes variados, margens belas, uma planície vasta e fértil à sua frente, enfim promete ser um grande e prestigioso rio. Porém, em certo momento, vem alguém e, de posse de explosivos potentes, dinamita o leito do rio, desviando-o para uma região a um tempo pantanosa e pedregosa.
Quem conhecer esse rio só no pântano e nas pedras dirá: Que horror! Não tem jeito. Mas, quem o conhecer também no seu traçado natural e primeiro, poderá acrescentar: Há uma esperança de se tornarem estas águas negras e poluídas as águas cristalinas e caudalosas que deveriam ser, caso se consiga que o rio retome o curso que lhe estava destinado; apesar de todas as aparências em contrário, este rio pode ter um grande futuro.
Esse rio tem um nome. Chama-se Brasil. Quem poderá fazer com que ele volte a seu curso primeiro, vindo do impulso dado nas origens por gigantes como Anchieta, Nóbrega e tantos outros? Quem poderá tirá-lo deste atoleiro para o qual o desviaram sucessivas influências de homens sem fé, sem moral, sem quaisquer princípios de ordem superior?
Nós, hoje, tanto afundamos no pantanal dos problemas inextricáveis, e tanto nos debatemos contra obstáculos pedregosos insuperáveis, que a tarefa parece impossível. Mas, olhado com atenção o Brasil contemporâneo, ainda nele se pode discernir um certo veio de almas (ou um certo veio nas almas de muitos) que não se deixou contaminar pelo lodo, e mantém algo do Brasil autêntico. Se a Providência preservou esse veio, cumpre procurá-lo com cuidado, apoiá-lo, prestigiá-lo, até que uma bênção de Deus faça dele o que a bênção de Jesus fez da água de Caná: transformou-a em vinho e o multiplicou.
Diz, porém, com razão, um adágio popular: “quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”. Para encontrar esse veio em torno de nós, talvez em nós, é preciso saber o que estamos procurando. E, para isto, é de grande ajuda conhecer o Brasil autêntico, como ele foi, ou melhor, como ele começou a ser.
Haveria nesse sentido toda uma História do Brasil a ser escrita. Não a história do desvio, como a aprendemos nas escolas, verdadeira em muitos pontos, mas unilateral. E sim a história dos desígnios de Deus para nossa Pátria, como eles foram se fazendo realidade no passado, como há um filão cristalino que permanece sem se contaminar; ou, em muitas almas, misturado à ganga e ao lodo, mas enfim permanece.
Um dia essa história se fará. Mas desde já alguns episódios podem ir sendo lembrados. Aqui recordo tão só um fato do século XVII.
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Os calvinistas holandeses buscavam aprofundar seu domínio em Pernambuco e Alagoas. Brasileiros e portugueses, brancos, negros e índios resistiam como podiam, mas não desistiam nem se entregavam. A nota de fé, de heroísmo, a noção da integridade luso-brasileira de todo o território nacional estava muito viva. Numa carta que as autoridades holandesas em Recife enviaram ao Governo de sua nação, em 9 de julho de 1648, transparecem bem o impasse em que se encontravam os invasores e a força de alma de nossos patrícios:
“Por aí podem Vossas Altas Potências julgar que tudo aqui deixa prever uma guerra tão longa de duração. como de dispêndio, com sucessos incertos, ao passo que, no caso de um bom êxito, ser-nos-á deixado pelo inimigo apenas um país esgotado e cheio de desolação, porque todo o seu procedimento tende a mostrar que intenta manter-se com obstinação, defendendo-se a todo transe.
“Apesar de sofrer quase diariamente reveses por água e ter precisão de muitas outras causas de necessidade, tais como vestuários, carne, etc., e de estar continuamente em sobressalto, apesar de tudo isto, rejeitaram o perdão que lhes foi oferecido, nem um só veio ter conosco, e persistem obstinadamente em sua rebelião”.(*)
Nesse texto, todo ele comovente, três palavras sobretudo me emocionam: “nem um só”. Sim, em meio à fome, a todo tipo de provações e sofrimentos, nem um só brasileiro se dobrou ante o calvinista invasor.
(*) A carta é assinada por W. V. Shouenborch, Hendr. Haecx. M. van Goch, Simão van Beamont: in Maj. Antonio S. Junior. Do Recôncavo aos Guararapes, Biblioteca Militar, 1949.
Texto publicado originalmente na revista Catolicismo em março de 1992.