“Se acreditarmos nos manuais, os de ontem e mais ainda nos de hoje, a herança da Grécia e de Roma foi completamente ignorada no nosso mundo ocidental, desde a queda do Império Romano até a Renascença: mil anos de obscurantismo!
Afirma-se, no mesmo embalo, que os autores de Antiguidade não foram conhecidos senão por intermédio dos Árabes, únicos capazes de explorar e transmitir essa cultura que nossos clérigos menosprezavam.
Esses livros falam a vontade dos sábios e dos tradutores de Toledo que no tempo dos califas de Córdoba teriam estudado e teriam tornado conhecidos os autores antigos.
Mas, eles se esquecem de lembrar que essa cidade episcopal, como muitas outras, e numerosos mosteiros, já no tempo dos reis bárbaros, e bem antes da ocupação muçulmana, era um grande centro de vida intelectual totalmente penetrado pela cultura antiga.
Os clérigos que ficaram cristãos eram muito conscientes da importância de transmitir essa herança, e continuaram seus trabalhos sob os novos senhores.
Querem nos fazer acreditar nas piores asneiras e mostram para nós os monges como copistas ignaros, só ocupados na transcrição dos textos sagrados, obsedados em jogar no fogo preciosos manuscritos dos quais nada podiam compreender.
Entretanto, testemunha alguma nos tempos obscuros da Idade Média viu alguma vez uma biblioteca entregue às chamas e são numerosos os que, pelo contrário, falam de mosteiros reunindo importantes coleções de textos antigos.
É evidente que os grandes centros de estudo gregos não se situavam de maneira alguma em terra de Islã, mas em Bizâncio. (…)Não há sequer indício na Igreja, nem no Oriente nem no Ocidente, de qualquer tipo de fanatismo, enquanto que os muçulmanos eles próprios relatam numerosos exemplos do furor de seus teólogos e de seus chefes religiosos contra os estudos profanos. (…)Os ‘árabes’ certamente procuraram menos e estudaram menos os autores gregos e romanos que os cristãos.
Os ocidentais não tinham necessidade alguma da ajuda dos árabes porque dispunham em seus países de coleções de textos antigos, latinos e gregos, reunidos no tempo do império romano e que tinham permanecido nos locais originais.
Sob todo ponto de vista, era em Bizâncio e não nos “árabes” que os clérigos de Europa iam aperfeiçoar seu conhecimento da Antiguidade.
As peregrinações na Terra Santa, os Concílios Ecumênicos, as viagens de prelados a Constantinopla mantinham e reforçavam toda espécie de contatos intelectuais.
Na Espanha dos visigodos, os mosteiros, as escolas episcopais, os reis e os nobres recolhiam os livros antigos em suas bibliotecas.A Espanha servia de etapa na rota marítima rumo à Armorique (Bretanha) e à Irlanda onde os monges, lá também, estudavam os textos profanos da Antiguidade.
Pode se esquecer que os Bizantinos, nos anos 550, reconquistaram e ocuparam a Itália toda, as províncias marítimas da Espanha e uma boa parte do que fora a África romana?
Que Ravenna ficou grega durante mais de duzentos anos e que os italianos chamaram essa região de Romagna, a terra dos romanos, quer dizer dos bizantinos, herdeiros do império romano?
Também nada é dito sobre o papel dos mercadores da Itália, da Provence ou da Catalunha que desde os anos mil frequentavam regularmente os portos do Oriente, com mais frequência Constantinopla que Cairo.
Seria preciso imaginá-los como seres cegos, sem alma e sem cérebro, sem outra curiosidade senão suas especiarias?
O esquema foi imposto, mas está errado.
Apresentar os ocidentais como tributários das lições dadas pelos árabes é facciosismo e ignorância demais.Além de não ser outra coisa senão uma fábula que reflete uma curiosa tendência para denegrir a si próprio.”