O Ancien Régime

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Não conhece a doçura de viver, quem não viveu na França antes de 1789!(Talleyrand)

Apresentação

Este trabalho consiste em uma pequena narração de hábitos comuns no período histórico conhecido como Ancien Régime (Antigo Regime), período da França anterior à Revolução Francesa.

Durante alguns séculos, esses fatos foram sistematicamente omitidos pela historiografia oficial, influenciada profundamente pelos princípios e justificativas da Revolução Francesa.

Exporemos textos de historiadores atuais, tanto franceses como de outras nacionalidades, descrevendo a vida quotidiana no interior da França.

Esses textos mostrarão um lado desconhecido de um período marcado pelo absolutismo dos Reis. Absolutismo esse, diga-se de passagem, muito menor do que buscaram alegar os arautos da revolução de 1789.

É sabido que o poder do Rei, mesmo no ápice do absolutismo, era profundamente limitado pelos diversos “privilégios” (leis privadas) do sistema feudal, baseadas no direito consuetudinário.

Sendo, portanto, necessário desfazer alguns preconceitos históricos em relação ao Ancien Régime, transcreveremos, como introdução, alguns estudos recentes sobre a realidade social, econômica e política da França do século XVIII.

Entretanto, não pretendemos – e nem é o objetivo deste trabalho – traçar um quadro completo sobre o período histórico marcado pela Revolução Francesa.

Nosso objetivo é apenas o de expor, resumidamente, alguns tópicos da realidade viva da França daquela época. Essa realidade, nós a buscamos em memórias, biografias, cadernos de viagens, cartas familiares, etc.

 

Introdução

A) A Revolução Francesa

Laicidade do Estado, soberania popular, direitos humanos, “Liberdade – Igualdade – Fraternidade”: 1789 assinala o início da Revolução Francesa, cujos princípios doutrinários definiriam os rumos do Ocidente nos séculos XIX e XX .

Há duzentos anos, sua história vem sendo escrita e interpretada segundo o prisma das mais diversas correntes ideológicas, cuja a discussão sistemática não interessa a este trabalho. Entretanto, para que se possa fazer uma análise mais consistente do que foi a Revolução Francesa, seguem-se alguns trechos de historiadores recentes retratando a época anterior à revolução, chamada de Ancien Régime.

B) O Desconhecido Ancien Régime

Esta descrição viva e penetrante é de Henri Robert, da Academia Francesa:

[Quem lê as memórias dessa época] não pode defender-se de um pesar furtivo por não ter conhecido, e compreende melhor, então, toda a inefável melancolia desta frase do Príncipe de Talleyrand: “Não conhece a doçura de viver, quem não viveu na França antes de 1789!”

É que nunca, efetivamente, a sua sedução fora tão viva, o seu encanto mais fascinador, o seu prestígio mais incontestado.

Paris era verdadeiramente a capital da humanidade civilizada. … Quanto a Nova-York, não era então mais do que um mercado de madeira, sebo e alcatrão.

A língua francesa não só era adotada por todas as nações como a língua oficial internacional dos tratados, como também era conhecida e falada pela aristocracia de todas as capitais da Europa, de modo que um francês se sentia como em sua casa em Haia, em Viena, em Berlim ou em São Petersburgo.

O luxo e a elegância nunca tinham atingido um nível tão alto.

Mesmo em relação à fartura, que os revolucionários dizem que não havia, seguem transcritos alguns trechos do relato do Dr. Poumiès de la Siboutie, médico em Paris, simpatizante de revolucionários fanáticos, como dos jacobinos que votaram a morte de Luís XVI.

Por toda parte reinava a ordem….

A grande habilidade dos senhores das casas consistia em consumir no seu meio e na família os produtos da terra, e em comprar o menos possível os objetos do consumo. (…)

A vida simples e afanosa desse tempo tinha, outrossim, seus prazeres, suas diversões. Em cada casa burguesa era praxe reunir três ou quatro vezes por ano os vizinhos à sua mesa. Daí que acabavam por ocorrer duas ou três reuniões dessas por mês. O almoço era servido precisamente ao meio-dia.

Mas que almoços! (…) Contei na mesa nove travessas de assado, no segundo serviço, de carnes do matadouro, de caças e aves. (…) Bebia-se vinho da casa, e do melhor, que fora posto em reserva nos bons anos. (…) A sobremesa se compunha de frutas, conservas e doces. E assim dava-se um belo e bom almoço sem ter que recorrer à cidade. Tudo fora produzido na propriedade.

Saiam da mesa às três da tarde…“.

Alguns poderiam dizer, erradamente, que esse relato se refere apenas àquela minoria de grandes burgueses possuidores de propriedades rurais. Ao contrário do que se espalhou pelo mundo, dados da historiografia moderna, informa Florin Aftalion, PhD em Economia Financeira pela Universidade de Northwestern, indicam que “os camponeses (…) possuíam quase 40% das terras (contando 5% dos bens comunais). O restante do solo pertencia à nobreza (25%), ao clero (10%) e à parte rica da burguesia (25%).”

Da mesma forma comenta o conceituado historiador e jornalista René Sedillot:

“Os nobres não eram mais proprietários senão de um quinto (avaliação de Albert Soboul), com grandes variações regionais. (…) As propriedades nobres cobriam, em média, 150 hectares (avaliação de Ernest Labrousse).”

Segundo François Bluche, professor na Universidade de Paris-Nanterre, “A França de 1774 e de 1789 era o país mais opulento que existia no mundo“.

O regime corporativo – pondera o renomado historiador Pierre Gaxotte, da Academia Francesa: “muito menos opressivo e muito menos generalizado do que se tem dito, não impedira o aparecimento da indústria nem se opusera a que ela ocupasse o devido lugar.

Diversos são os historiadores que demonstram a inconsistência das teses históricas dos revolucionários; entretanto, a narração que se segue se sobressai às demais. Diz ela respeito aos “cahiers“, relatórios que todas as paróquias de França foram autorizadas a redigir em 1789, para expor a el-Rei suas necessidades e formular seus desejos de reformas.

Delas – papeleira imensa que se tem hoje o prazer de exumar, erguem-se, de fato, lamentações e gritos de angústia capazes de arrancar uma lágrima aos olhos mais endurecidos. É o que propriamente se chama: “história oficial“.

Com efeito, destacado pela Assembléia, o Conde Beugnot examinou atentamente esses “cahiers” ….

Todos, escreve ele, tinham sido copiados de modelos impressos e em circulação. O escriba local apenas fazia alguns acréscimos, que contrastava extravagantemente com o resto. Assim, depois de exigirem a separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário, a liberdade de imprensa, o julgamento por júri, a abolição da servidão, “les habitants” insistiam para que seus cães fossem libertos do “billot”, espécie de trave pesada que, por ordem dos senhores, eram dependurados no pescoço desses bichos a fim de impedi-los de caçar lebres. Solicitavam a permissão de conservar fuzis em suas casas para poderem defender-se contra os lobos“.

Mas o mais surpreendente nos revela François-Yves Besnard, cura da paróquia de Nouans. Bem colocado para conhecer a miséria de seu rebanho, ele a descreveu, no relatório ao Rei, da seguinte forma:

Nouans, expõe o ‘cahier’, contém mais ou menos 150 famílias. Uma parte é tão pobre que não consegue senão com dificuldade os mais parcos meios de subsistência. A outra, exceção feita de três ou quatro famílias cuja abastança não oferece nada de especial, mantém-se por seu trabalho e sua economia“.

Seguem-se as recriminações contra a milícia, os impostos, o preço alto do fumo, as corvéias, etc…

Alguns meses mais tarde, entusiasmado com as novas idéias, Fraçois-Yves Besnard renúncia ao sacerdócio – o que o torna insuspeito de exageradamente indulgente para com o “Ancien Régime“.

Ora, nos “Souvenirs” [memórias] de sua longa vida, Yves Besnard nos apresenta, de sua paróquia, um retrato de todo em todo diferente daquele que em outros tempos endereçara “à Messieurs des États Généraux“.

Conta-nos que, chegando a Nouans, observou surpreso: pomares com árvores frutíferas, hortas, campos com trigo, com cânhamo, com feijões, com trevo, e bois e cavalos pastando “com erva até o ventre“. Nenhuma nesga de terra vazia. As casas não eram confortáveis, mas os terreiros estavam bem povoados. Qualquer pequena propriedade contava comumente seis bois de serviço, seis vacas leiteiras, seis novilhas, seis touros, duas éguas para criação, sessenta ou setenta carneiros e quatro ou cinco porcos…

A alimentação dos campônios, mesmo a dos menos abastados, era “substancial e abundante“. O pão, muito bom. E a cidra não faltava a ninguém.

No almoço e no jantar, após a sopa, seguia-se um prato de carne ou de ovos ou de legumes. No desjejum e na colação, havia sempre queijo, manteiga e, freqüentemente, frutos crus ou cozidos. Em mesas recobertas com toalhas, cada conviva, munido de um prato, de um garfo, e de uma colher, servia-se à vontade“. (…)

Eis um exemplo da contradição entre a história real e a história revolucionária.

Pouco difundido, também, é o movimento popular que teve origem na Vandéia, região noroeste da França, em que camponeses, chamados de “Chouans“, pegaram em armas contra a I República, em 1793, a favor do “Antigo Regime“.

 

Vie de Mon Père

Retif de la Bretonne, camponês, deixou-nos um retrato indelével de um desses interiores franceses de outrora, ricos de conteúdo metafísico, que constituirão para sempre uma glória da França e um encanto para os espíritos isentos de preconceitos.

A) Uma Refeição em Família

Retif de la Bretonne, em sua “Vie de Mon Père“, conta-nos que sua família era da vila de Nitri, “dans le Tonnerrois“, na Borgonha.

Todas as noites, no jantar, meu pai, como velho patriarca, presidia à mesa de uma casa numerosa. Uma só mesa e vinte e duas pessoas. Numa ponta, junto ao fogo, meu pai. A seu lado, minha mãe, sempre ao alcance dos pratos a servir, porque nessa hora quem se ocupava da cozinha era só ela. Depois vinham os filhos da casa, segundo a idade. Em seguida, o mais velho dos empregados, o empregado da charrua e seus auxiliares. E, sucessivamente, os vinhateiros, o vaqueiro e o pastor. Por fim, as duas criadas, de frente para sua senhora, fechavam a mesa. Todos comiam o mesmo pão. O pai bebia vinho velho; a mãe e as crianças, água; os criados um vinho que lhes parecia bem melhor do que o de seu senhor… Terminado o jantar, o pai levantava-se, tomava a Sagrada Escritura e lia três ou quatro capítulos, que, comentados curta e pouco freqüentemente, constituíam assunto de conversa para o outro dia. Logo após, o catecismo. Se era inverno, como as noites são longas, o pai contava histórias antigas ou modernas, fazendo entrar a propósito as mais belas sentenças dos Antigos. Feita a oração em comum, todos iam deitar-se em silêncio, porque, depois da oração, o riso e as conversas em voz alta eram severamente proibidos“.

É importante notar que os empregados comem junto com os patrões. Pouco conhecida é, atualmente, a origem da expressão “criada” para designar a empregada doméstica ou similar. Trata-se, entretanto, de uma expressão surgida naturalmente, pois a empregada era criada pela família e era como que mais uma da casa.

Esse patriarca, que se assentava assim à frente dessa numerosa mesa de que nos conta Rétif de la Bretonne, chamava-se Edme e era filho único de Pedro, outro camponês, homem autoritário, severo e distante.

B) Um Chicote 

Certo dia, muito de manhã, quando Edme já estava pronto para partir a cavalo para o trabalho com a charrua, Pedro, seu pai, aproximou-se e disse-lhe.

– Dá-me teu chicote!

– Ei-lo, meu pai!

E três vergastadas cortaram em três lugares a camisa e as carnes de Edme até o sangue. À noite, de volta, a mãe perguntou-lhe o que era aquilo.

– Não é nada, minha mãe!

Mas ela soube-o pelos agregados. Edme conversara três vezes com uma jovem da paróquia sem a permissão do pai. Todavia, compadecida porque o filho era um modelo de correção, não resistiu de dizer ao marido:

– Como é que você foi fazer aquilo?

Ele, virando o rosto, respondeu:

– É assim que eu trato os apaixonados!

O filho de Pedro não se descuidava de nada. Assim que a mãe terminou de curá-lo, tomou uma enxada e distraídamente se pôs a limpar o jardim. Pelas tantas, percebeu o pai que, sem o ver, enxugava lágrimas encostado a uma árvore. Edme aproximou-se, ajoelhou-se e disse-lhe:

– Ah! Meu pai, eu lhe custo lágrimas ! Mas eu sei que me amais e isto me faz feliz!
A um gesto do pai, levantou-se e continuou o trabalho. Pedro, que nunca tinha usado a expressão “meu filho”, nem nunca arrancara uma erva do jardim, nem jamais lhe dera uma enxada desde que tivera alguém em idade de o fazer, achegou-se e pegou a enxada de Edme, dizendo:

– Meu filho, é trabalho demais para um dia! Vá repousar, eu acabo o serviço!
De longe, maravilhados, todos presenciavam a cena: os criados, as filhas, a mulher. Esta, comovida, não se conteve:

– Ah! É um bom pai! É um bom pai! Eu sempre lhes disse!

C) O Casamento de Edme

De acordo com o costume do interior, segundo o qual pelo menos uma vez na vida se devia ir à Paris, Edme, obedecendo ao pai, aprontou sua mala de couro de cabra, e partiu a pé. Dois anos depois recebeu uma carta. O pai mandava lhe dizer que estava às portas da morte. Edme acorre. Era uma esperteza. Antes de chegar em casa, um amigo o conduziu a uma propriedade vizinha. O pai estava lá.

– Meu filho, eu recebi a tua carta pedindo-me autorização de casamento. As moças de Paris são vivas. Eu temi por ti. Aqui estão as filhas do Sr. Dondaine. Escolhe uma. O casamento deverá ser dentro de três dias.

– Eu teria vergonha de ser pai, se neste passo tão decisivo eu não lhe obedecesse…

– E saindo da casa do Sr. Dondaine, continuaram a conversa. O pai:

– O camponês é um dos homens mais excelentes…

– E é nessa classe tão preciosa, tão querida dos bons reis, meu pai, que eu quero viver e morrer.

– Fica, pois, aqui, meu filho. Aqui tudo está cheio de nós, tudo te lembrará a nossa honra. Teu avô era conhecido como “O homem justo”. Lá na cidade, perdida no meio do populacho (populace), o que será de nossa descendência? … Uma das artes mais dignas do homem é a agricultura… Fiquemos, pois, na fonte. Ela é mais pura que o rio.

Três dias depois, Pedro morria. Edme, para testemunhar-lhe sua obediência, casou-se diante do seu corpo.

D) Meu pai era para mim a imagem viva de meu Deus

As palavras de Edme a seus descendentes: “Sem aquelas vergastadas eu me teria libertado como tantos outros. Meu pai cortou o mal pela raiz. O vigor tinha sido necessário porque meu apego já ia longe…

Essas palavras explicam bem a aceitação humilde do castigo merecido. Mas elas já não explicam que ele obedecesse tão forte, pronta e respeitosamente à ordem de casar-se que lhe dera o pai, quando é sabido que a parisiense tinha maior dote, alguma ilustração e lhe agradava imensamente mais que a filha desgraciosa do Sr. Dondaine. Sobretudo, não explicam aquelas palavras de sua mãe! “– Ah! É um bom pai! É um bom pai! Eu sempre lhes disse!“, quando ela mesma padecia as conseqüências dos defeitos dele e até de suas infidelidades.

Embrutecimento de camponês?

Não! Inteligência profunda, que sabia transcender as aparências e penetrar as verdadeiras realidades das coisas. Prova-o esta afirmação de Edme:

– Meu pai era para mim a imagem viva de meu Deus“.

Aqui termina a narração de um trecho do livro de Retif de la Bretonne, “Vie de Mon Père“, que julgamos interessante transcrever pela sua riqueza em expressar, de forma palpável, a mentalidade e a cultura de uma época histórica.

 

Conclusão

“Reportar todas as coisas deste mundo para um mundo que nós não vemos; perceber as relações secretas das coisas visíveis com as coisas invisíveis; ver nas realidades inferiores o espelho de realidades superiores; distinguir nos seres, nas situações, “símbolos e encarnações de princípios eternos e brilhantes”; admirar na natureza e na sociedade “un grand et magnifique spectacle d’apparences“; explicar e julgar tudo de acordo com essa impostação, e, finalmente, construir, edificar e, até, destruir segundo ela, com muito equilíbrio, com muito senso de harmonia, era um espírito, um sangue, uma vida que, em maior ou menor proporção, de um modo mais profundo ou menos profundo, percorriam de alto a baixo o corpo da velha frança.”

Deste enfoque metafísico brotaram os matizes monárquicos e aristocráticos do espírito francês, que produziram esta “féerie” arquetípica e civilizadora.

Na perspectiva deste trabalho, a realidade da França, muito mais do que fruto de fatores econômicos, sociais ou políticos, foi marcada por esse espírito metafísico, por essa realidade cultural profunda, que buscava transparecer, na sociedade, aquilo existia na alma francesa.

Apesar dos detratores do Antigo Regime ocultarem essa realidade profunda em que se manifesta todo um modo de ser e de viver, a memória dessa época subsiste e subsistirá, consignada que está em inúmeros documentos que nem os revolucionários – e nem o tempo –  conseguiram sepultar nas sombras do esquecimento.

Ainda há muito o que se estudar e o que se escrever. Todavia, já foi feito o mais difícil, isto é, enfrentar a história contada pela Revolução Francesa, implantada sobre o sangue de Maria Antonieta e Luiz XVI!

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