Explanamos neste artigo nossa resposta a uma pergunta de um leitor, dado que o tema pode ser de interesse de muitos outros.
Pergunta — Caros irmãos do IPCO. Surge-me uma dúvida que espero os senhores, mais letrados, possam saná-la. Por exemplo, em um Estado muçulmano há diversos graus de perseguição religiosa aos cristãos, até mesmo proibindo-nos de manifestar a nossa fé até perseguições e mortes. Contudo, é um Estado teocrático islâmico, portanto, seria lícito eles nos proibirem de exercer nossa fé, como em um Estado declaradamente católico, a Igreja – pelo bem das almas – proíbe manifestações públicas de outros credos?
Ou, por exemplo, em um Estado ateu ou comunista, seria lícito perseguir os fiéis, como em um Estado católico o ateísmo deve ser combatido?
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IPCO – Para responder a essa questão, é preciso antes esclarecer alguns termos.
O islamismo, como bem observou nosso consulente, é uma religião que busca instalar uma teocracia, isto é, um governo onde a autoridade religiosa seja a máxima autoridade política. Já o cristianismo, por sua vez, é essencialmente teocêntrico e não teocrático, tendo Deus no centro, mas cuja esfera temporal é distinta da esfera espiritual, embora não deva estar em contradição com ela.
Mesmo durante a Idade Média, uma pessoa que não fosse católica podia “exercer sua fé”, tanto individualmente como em família. A proibição do proselitismo e da publicidade do culto¹ não atingia a sua consciência e nem impedia que sua família pudesse ser educada em seus princípios religiosos. Já no islamismo, dependendo do país e de sua interpretação do Corão, até mesmo a consciência pode ser violada, como tem sido frequentemente pelo Estado Islâmico.
Essa é uma diferença importante na questão, mas não resolve o problema de fundo levantado pelo consulente, que nos trata de “irmãos”, e fala em “nossa fé”, de onde é de se presumir que seja católico ou pelo menos genericamente cristão.
A pergunta, portanto, parece refletir não tanto a mentalidade dele, quanto uma mentalidade difusa no ambiente contemporâneo, e contra a qual ele legitimamente quer conhecer os argumentos para refutá-la ou pelo menos para não se deixar influenciar por ela. Nada mais justificado do que essa posição.
Vivemos hoje, infelizmente, em um ambiente carregado de uma mentalidade relativista, de um liberalismo filosófico contra toda e qualquer verdade objetiva. Nessa concepção, os Estados são levados a admitir uma igualdade de direitos a todas as religiões, inclusive às satânicas, ou proíbe a todas, como os Estados comunistas.
Assim sendo, sempre segundo essa mentalidade, se admitirmos que uma religião tenha direito a se considerar exclusiva (ao menos no campo social e político), então as outras também têm o mesmo direito. Dependerá apenas das condições de tempo e lugar que cada uma se autoproclame exclusiva, com prejuízo das demais. Por exemplo, na França medieval seria a Igreja Católica; na Arábia Saudita de hoje, seria o islamismo, em certas regiões da Índia, o hinduísmo e assim por diante.
Esse parece ser o centro da questão levantada. E sobre isso trataremos agora.
O homem é responsável por suas decisões
Primeiramente, é preciso lembrar que o homem, ao contrário dos animais irracionais, move-se não pelos seus instintos, mas pelas suas decisões, suas escolhas.
A vida de um homem é resultante de suas escolhas. Ele pode não controlar o que ocorre com ele, mas ele controla como responde aos acontecimentos. Ser bom ou ser ruim depende exclusivamente dele.
Há um célebre ditado inglês que diz: “quem planta um ato, colhe um hábito; quem planta um hábito, colhe um caráter; quem planta um caráter, colhe um destino”. Ou, no provérbio latino: “talis vita, finis ita” (“assim viveu, assim morreu”).
Também como consequência dessa natureza racional, o ser humano justifica suas decisões. Assim fazem os muçulmanos que explodem bombas em restaurantes em nome de sua religião ou o Estado Comunista em nome de seu ateísmo.
Até o mais relativista dos homens justificará seu relativismo, considerando-o como a única verdade. Para ele, contraditoriamente, a “verdade é relativa”, sendo esse relativismo uma verdade absoluta…
O homem tem meios naturais de conhecer a verdade
Diante disso, a única conclusão possível é pela existência da Verdade como decorrência da própria natureza humana, racional e livre, capaz de fazer escolhas motivadas pela virtude ou pelo vício.
Mas como conhecer a verdade?
Ensina Santo Tomás de Aquino que o homem não erra na apreensão da realidade. Ele pode errar no juízo que faz dessa realidade. A verdade, nesse sentido, é a adequação da ideia ao objeto, do conceito à realidade.
Muito poderíamos falar sobre a religião especificamente sob esse aspecto da apologética, que seria tratar do tema no campo puramente natural, a começar com as provas da existência de Deus que o próprio Santo Tomás tão bem desenvolveu através das cinco vias (facilmente encontradas na internet). São elas, resumidamente: a) motor imóvel; b) causa eficiente; c) ser necessário e seres possíveis; d) graus de perfeição do criado; e) governo supremo. Ninguém pode alegar desconhecimento de Deus, pois, se tiver reta intenção e um pouco de boa vontade, facilmente chega até Ele pelos degraus das coisas criadas.
Considerar as religiões como todas iguais seria correto se a verdade fosse, efetivamente, um mero subjetivismo dos homens, livres para escolher segundo suas conveniências aquilo no que acreditar ou rejeitar.
Isso nos levaria à ideia que Deus, após ter criado os homens, os abandonou a sua própria sorte, não lhes dando meios de conhecer a verdade religiosa, nem quem Ele é, nem como deve ser cultuado etc.
O Apóstolo São Paulo já refutou essa posição no que se refere aos pagãos, que não chegaram a conhecer a Nosso Senhor Jesus Cristo e que se entregavam a todo tipo de libertinagens e pecados. Ensina o Apóstolo que eles tinham culpa no que faziam, pois todo ser humano tem impressa na sua alma a lei natural, segundo a qual deve pautar seus atos e sua existência, além de poder conhecer a Deus pelas obras que Ele fez neste mundo.
Diz o Apóstolo: “A ira de Deus se manifesta do alto do céu contra toda a impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça aprisionam a verdade. Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles o lêem em si mesmos, pois Deus lho revelou com evidência.
“Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar. Porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato”. (Rom 1, 18-21)
Além disso, Deus revelou aos homens a verdadeira religião
Mas há mais. É que Deus se revelou aos homens e o fez em meio a milagres estrondosos, que só se podem negar por má fé. O Antigo Testamento está repleto dessas manifestações de Deus, por exemplo os Dez Mandamentos revelados a Moisés, e que compendiam a Lei Natural.
Mas ainda há muito mais. Jesus Cristo desceu dos Céus e se fez homem, ensinando-nos as verdades da Fé, e fundando, por meio dos Apóstolos, sua Igreja para ser guardiã de sua palavra, dispensadora de suas graças por meio dos sacramentos e de sua doutrina por meio de uma Hierarquia para esse fim constituída. É a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Provou sua missão divina por meio de milagres e prodígios nunca antes vistos, inclusive a ressurreição de mortos e depois sua própria Ressurreição.
Após elogiar São João Batista, Jesus afirmou de si mesmo: “Tenho maior testemunho do que o de João, porque as obras que meu Pai me deu para executar – essas mesmas obras que faço – testemunham a meu respeito que o Pai me enviou” (Jo 5, 36). Por isso, acrescentou: “Quem não está comigo está contra mim; e quem não ajunta comigo, espalha” (Mat 12,30).
A religião verdadeira é que tem todos os direitos
Em face desses pressupostos, torna-se evidente a resposta à pergunta de nosso consulente.
Se Deus tivesse abandonado os homens a sua própria sorte, sem lhes dar os meios de conhecer a verdade a respeito dEle, então todas as religiões se equivaleriam e teriam os mesmos direitos, ou seja, não valeriam nada. Mas como Deus proporcionou aos homens os meios naturais e revelados de conhecê-Lo, e isto com provas abundantes, então é a Religião verdadeira que tem todos os direitos e deve ser seguida.
É claro que, num Estado laico como o nosso, em que a Igreja tem seus direitos em larga medida coarctados, ela não tem condições de exercer na plenitude tudo quanto lhe caberia por justiça diante de Deus. Nessas condições, ela pode e mesmo deve usufruir da parcela de liberdade que lhe é concedida, em prol da glória de Deus e da salvação das almas. Sem renunciar em nada aos princípios que a regem e aos direitos que lhe foram concedidos por seu Divino Fundador, e lutando até, na medida em que a prudência o aconselhar, para que seja restabelecida no grau de dignidade que lhe compete.
Respondida assim a pergunta do consulente, seguem algumas citações esclarecedoras, dentre as inúmeras que caberia apresentar sobre o tema.
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1 — “O eterno pastor e guardião das nossas almas (cf. 1 Pd 2, 25), querendo perpetuar a salutar obra da redenção, resolveu fundar a santa Igreja, na qual, como na casa do Deus vivo, todos os fiéis se conservassem unidos, pelo vínculo de uma só fé e amor.” (Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática Pastor Aeternus, 18 de julho de 1870, n. 1. Cf. Denzinger-Hünnermann, n. 3050.
2 — Ensinou o IV Concílio do Latrão, Cap. 1. A fé católica, 11-30 de novembro de 1215: “Una vero est fidelium universalis Ecclesia, extra quam nullus omnimo salvatur… – Há uma só Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém se salva…”. Cf. Denzinger-Hünnermann, n. 802.
3 — “Entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar está também a afirmação infalível que nos ensina que ‘fora da Igreja não há salvação’.” (Carta do S. Ofício ao arcebispo de Boston, 8 de outubro de 1949. Cf. Denzinger-Hünnermann, n. 3866)
4 – O famoso Syllabus do Bem-aventurado Papa Pio IX, elenca uma série de proposições condenadas pela Igreja. Nessa lista, a 16ª proposição condenada é a seguinte: “No culto de qualquer religião podem os homens achar o caminho da salvação eterna e alcançar a mesma eterna salvação”. O Papa cita como base de sua condenação os seguintes documentos: a) Enc. “Qui pluribus”, de 9 de Novembro de 1846; b) Aloc. “Ubi primum”, de 17 de Dezembro de 1847; c) Enc. “Singulari quidem” de 17 de Março de 1856.
INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA
24 de Novembro de 2015
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(1) ver artigo “A igreja de Satanás e a liberdade religiosa – Uma pergunta e uma resposta”
Fonte: Instituto Plinio Corrêa de Oliveira