Ninguém conseguiu dormir naquela noite, passada em Anathot. Um eclipse de lua espalhou de repente as trevas mais densas. A lua mostrou-se depois, como encoberta por um véu ensangüentado e os peregrinos foram tomados de terror, mas os que conheciam a marcha e os movimentos dos astros — diz Alberto D’Aix — tranqüilizaram os companheiros, dizendo-lhes que um eclipse do sol teria sido muito mais funesto para os cristãos, mas que um eclipse da luz anunciava a destruição dos infiéis.
Desde o raiar do dia, já todos estavam em marcha. Os cruzados deixaram à direita o Castelo de Modin, famoso pela sepultura dos Macabeus; mas aquelas ruínas veneráveis mal lhes puderam atrair a atenção, tanto os preocupava a cidade de Jerusalém.
Atravessaram sem parar o Vale do Terebinto, celebrado pelos profetas. Atravessaram a mesma torrente onde David apanhou cinco seixos com os quais derrubou o gigante Golias. Á direita e a esquerda elevam-se montanhas onde haviam acampado os exércitos de Israel e os dos filisteus.
Depois que venceram a última montanha que os separava da cidade santa, de repente Jerusalém apareceu diante deles. Os primeiros que a viram exclamaram com transportes de alegrias: ” Jerusalém! Jerusalém!” Essa palavra voava de boca em boca, de fileira em fileira, e ressoava de vale em vale até onde se encontrava ainda a retaguarda dos cruzados.
— Oh bom Jesus, diz o monge Roberto, testemunha ocular, quando os cristãos viram a Cidade Santa, quantas lágrimas correram de seus olhos….
Uns desceram dos cavalos e se puseram de joelhos, outros, beijavam a terra pisada pelo Salvador, soltando longos suspiros, muitos atiraram por terra suas armas e estenderam os braços para a cidade de Jesus Cristo. Todos repetem ao mesmo tempo:
— Deus o quer! Deus o quer!”, e renovam o juramento que fizeram tantas vezes de libertar Jerusalém.
História de Jerusalém
A história nos dá poucas notícias positivas sobre a fundação e a origem de Jerusalém. A opinião comum é que Melquisedec, que é chamado rei de Salem, na escritura, lá havia fixado sua residência. Foi em seguida a capital dos jebuseus, o que lhe fez dar o nome de Jebus. Do nome de Jebus e do nome de Salem, que significava visão ou morada da paz, formaram o nome de Jerusalém, que a cidade teve sob os reis de Judá.
Desde a mais remota antigüidade, Jerusalém não perdia em magnificência para nenhuma cidade da Ásia. Jeremias chama-a cidade admirável, por causa da sua beleza. David chama-a a mais gloriosa e a mais ilustre das cidades do Oriente, pela natureza de sua legislação, toda religiosa, mostrou sempre um invencível apego às suas leis; mais freqüentemente esteve em luta contra o fanatismo de seus inimigos e de seus próprios habitantes. Seus fundadores, diz Tácito, tendo previsto que a oposição dos costumes seria uma fonte de guerras, tinham posto toda a sua solicitude em fortificá-la e nos primeiros tempos do império romano era uma das praças mais fortes da Ásia.
Jerusalém, chamada pelos muçulmanos de a Santa, Casa Santa, a nobre, formava no tempo das cruzadas, como hoje, um quadrado, mais longo que largo, de uma légua de perímetro. Encerra em seu recinto quatro colinas, que são como outros tantos movimentos do terreno, através da extensão da cidade; o Moriah onde a mesquita de Omar ocupa uma porção do edifício do templo de Salomão, o Gólgota, sobre o qual se eleva a igreja da Ressurreição, o Bezetha, o Acra. Somente uma metade do monte Sion está encerrada nos muros de Jerusalém, do lado do sul. No tempo dos reis hebreus a Cidade Santa tinha maior extensão; na época de sua reconstrução por Adriano depois das desgraças da conquista perdeu sua antiga muralha ao sul, a oeste e ao norte. O monte das Oliveiras domina Jerusalém do lado do oriente; entre o monte e a cidade, o vale de Josafat se apresenta como um grande barranco no fundo do qual está a torrente de Cedron.
Como Jerusalém, sob a dominação dos muçulmanos, excitava continuamente a ambição dos conquistadores e cada dia novos inimigos disputavam-lhe a posse, não se haviam descuidado de fortificá-la.
À aproximação dos cruzados, o lugar-tenente do califa Iftikhar-édaulé, tinha feito encher as cisternas e se tinha rodeado de um deserto, onde os cristãos deviam se encontrar como presas de todo o gênero de misérias. Os víveres, as provisões necessárias para um longo cerco, tinham sido transportadas para a praça. Um grande número de operários ocupavam-se dia e noite em cavar fossos, consertar as torres e as muralhas. A guarnição era de quarenta mil homens; vinte mil habitantes tinham tomado as armas. Os imans percorriam as ruas exortando o povo a defender a cidade; sentinelas vigiavam sem cessar nos minaretes, nas muralhas de Jerusalém e no Monte das Oliveiras.
Na noite que precedeu à chegada dos cruzados, vários guerreiros egípcios avançavam contra os cristãos.
Balduíno de Bourg, com seus cavaleiros foi-lhes ao encontro; Tancredo vinha de volta de Belém. Depois de ter sido perseguido o inimigo até as portas da Cidade Santa, o herói normando deixou seus companheiros e foi sozinho ao Monte das Oliveiras, de onde contemplou com sossego e a vontade a Cidade prometida as armas e a devoção dos peregrinos.
Foi perturbado na sua piedosa contemplação por cinco muçulmanos que saíram da cidade e vieram atacá-lo. Tancredo não procurou evitar o combate; três dos assaltantes caíram sob seus golpes e os outros dois fugiram para a cidade. Sem apressar nem diminuir a marcha, Tancredo foi em seguida reunir-se ao grosso do exército que, no seu entusiasmo, avançava sem ordem e se aproximava da Cidade Santa, cantando as palavras de Isaías: “Jerusalém, ergue os olhos e vê o libertador que vem quebrar teus grilhões”.
Montagem do acampamento
Logo no dia seguinte, à chegada, os cruzados começaram a preparar o cerco da praça. Uma esplanada coberta de oliveiras estende-se do lado setentrional; lá, o terreno apresenta uma superfície unida; é o lugar, em redor da cidade, que mais se presta para o acampamento de um exército.
Godofredo de Bouillon, Roberto, conde de Normandia, Roberto, conde de Flandres, ergueram suas tendas no meio dessa esplanada; seu acampamento estendia-se entre a gruta de Jeremias e os sepulcros dos reis. Eles tinham diante de si a porta agora chamada porta de Damasco e a pequena porta de Herodes, hoje fechada.
Tancredo levantou sua tenda à direita da de Godofredo e da dos dois Robertos, no terreno que está a noroeste das muralhas.
Depois do acampamento de Tancredo, vinha o de Raimundo, conde de Tolosa, diante da porta do poente. Suas tendas cobriam as elevações chamadas agora, colina de São Jorge, separadas das muralhas pelo estreito vale de Rafain e por uma vasta piscina. Essa posição não lhe permitia concorrer utilmente ao cerco; foi o que os levou a transportar uma parte de seu acampamento para o lado meridional da cidade, sobre o monte Sion, no mesmo lugar onde Jesus Cristo tinha celebrado a Páscoa com seus discípulos.
Então, como hoje, a parte do Monte Sion que não estava situada dentro da cidade, apresentava pouca extensão. Os cruzados que ali se haviam estabelecido podiam ser alcançados pelas flechas lançadas do alto das torres e das muralhas. As disposições militares dos cristãos deixavam livres os lados da cidade, defendidos ao sul pelo vale de Gihon ou de Siloé, ao oriente pelo vale de Josafat. A Cidade Santa então foi visitada apenas pela metade pelos peregrinos. Havia-se somente estabelecido no alto do monte das Oliveiras um posto de sentinela.
Em redor de Jerusalém, cada passo que os peregrinos davam, despertava-lhes uma lembrança querida à religião. Nesse território reverenciado pelos cristãos, todos os vales e rochedos tinham seu nome na história sagrada. Tudo o que eles viam, despertava ou inflamava-lhes o entusiasmo.
Mais que tudo não podiam afastar seus olhos da Cidade Santa e lamentavam o estado de rebaixamento em que ela tinha caído. Outrora, tão soberba parecia sepultada em suas próprias ruínas e podia-se então, para nos servirmos de palavras de José, perguntar em Jerusalém mesma, onde estava Jerusalém.
Com suas casas quadradas, sem janelas, encimadas por um terraço plano, ela se oferecia aos olhos dos cruzados como uma massa enorme de pedras fincada entre os rochedos. Viam-se, cá e lá no seu interior, alguns ciprestes, palmeiras, entre as quais erguiam-se campanários, no bairro dos cristãos e mesquitas, no dos infiéis. Nos vales e nos outeiros próximos da cidade, que as antigas tradições representavam cobertas de jardins e de bosques, mal cresciam oliveiras esparsas e arbustos espinhosos.
O aspecto desses campos estéreis, desses rochedos fendidos, desse solo pedregoso e avermelhado, dessa natureza, queimada pelo sol, apresentava por toda a parte, aos peregrinos a imagem de luto e misturava uma tristeza sombria aos seus sentimentos religiosos. Parecia-lhes ouvir a voz dos profetas que tinham anunciado a escravidão e as desgraças da cidade de Deus, e, no auge de sua devoção, eles se julgavam chamados para restitui-lhe o brilho e o esplendor.
Padecimentos dos cristãos
A chegada de um grande número de cristãos, vindos de Jerusalém, para se juntarem aos cruzados, animou-lhes ainda mais o zelo pela libertação da Cidade Santa.
Privados de seus bens, expulsos de suas casas, vinham procurar asilo e socorro entre seus irmãos do Ocidente. Narravam as perseguições que os muçulmanos haviam movido a todos os que adoravam a Jesus Cristo. As mulheres, as crianças, os velhos, eram conservados como reféns; os homens, em condições de pegar em armas, eram condenados a trabalhos que sobrepujavam suas forças.
O chefe do principal albergue dos peregrinos tinha sido posto a ferros com um grande número de cristãos. Haviam saqueado os tesouros das igrejas para a manutenção dos soldados muçulmanos. O patriarca Simeão tinha ido à ilha de Chipre, para ali implorar a caridade dos fiéis e salvar seu rebanho, ameaçado de destruição, se eles não pagassem um enorme tributo imposto pelos opressores da Cidade Santa. Todos os dias os cristãos de Jerusalém eram oprimidos por novos ultrajes e muitas vezes os infiéis tinham ameaçado entregar ao fogo e destruir completamente o Santo Sepulcro e a igreja da Ressurreição.
Os cristãos fugitivos, fazendo aos cruzados estas dolorosas revelações, exortavam-nos a atacar o mais depressa possível Jerusalém. Desde os primeiros dias do cerco, um solitário, que tinha posto o seu retiro no Monte das Oliveiras, veio unir suas orações às dos cristãos, expulsos da Cidade e rogou aos cruzados, em nome de Jesus Cristo, de quem se dizia intérprete, que dessem um assalto geral. Estes, que não tinham nem escadas, nem máquinas de guerra, aceitaram os conselhos do piedoso eremita e julgaram que sua coragem e suas espadas seriam suficientes para derrubar a muralha dos inimigos.
Os chefes, que tinham visto tantos prodígios operados pelo valor e pelo entusiasmo dos soldados cristãos e que não haviam se esquecido das longas misérias do cerco de Antioquia, sem dificuldade cederam à impaciência do exército; além disso, a vista de Jerusalém tinha inflamado os cruzados de um ardor que se poderia julgar invencível e os menos crédulos não duvidaram de que Deus protegeria a sua coragem por meio de milagre.
Ao primeiro sinal, o exército cristão avançou em ordem, para as muralhas. Uns, reunidos em batalhões cerrados, cobriam-se com os escudos, que formavam por sobre suas cabeças uma abobada impenetrável; eles procuravam derrubar as muralhas a golpes de lanças e de martelos, enquanto os outros, enfileirados ficaram à distância usando a funda e a arbaleta. O óleo e o pixe ferventes, grandes pedras, enormes pedaços de madeira, caíram sobre os primeiros soldados. Nada podia intimidar a coragem dos cruzados. Já os primeiros anteparos tinham ruído sob seus golpes; mas a muralha interior oferecia-lhes um obstáculo invencível.