continuação do post anterior: A Coroa de Espinhos e a Sainte-Chapelle
São Luís regressou de Taillebourg padecendo uma disenteria que se agravou rapidamente. Esta havia sido a causa da morte de seu pai, Luís VIII.
A rainha-mãe, Branca de Castela, pediu ao abade de Saint-Denis — abadia onde repousam os restos dos reis da França — para expor à veneração pública o corpo do glorioso São Dionísio, protetor do reino, bem como as relíquias de São Eleutério e São Rústico, seus companheiros de martírio. São Luís já tinha feito seu testamento, e murmurava em voz baixa:
— “Olhai para mim. Eu era o homem mais rico e mais nobre do mundo, o mais poderoso de todos pelos tesouros, pelo meu poder e pelos meus amigos, e eis que não posso obter da morte sequer uma trégua, nem uma hora à doença. De que valeu tudo isso?”
Quando ele perdeu o conhecimento, os médicos anunciaram seu fim iminente. O Palácio Real encheu-se de lamentações, suspiros e prantos. O clero recebeu ordem de preparar as exéquias.
Em certo momento, acreditou-se que o santo-herói tinha morrido. Joinville conta:
“Ele chegou a tal ponto, que uma das damas em volta quis puxar o pano por cima do rosto, dizendo que estava morto. Outra não quis. E enquanto discutiam, Nosso Senhor agiu nele e lhe devolveu a saúde.
“Tão logo pôde falar, pediu que lhe impusessem a Cruz, e assim foi feito. Então, ao ouvir dizer que ele falara, a rainha-mãe manifestou o maior júbilo que podia.
“Mas quando soube que o filho se tinha cruzado [decidido ir para a Cruzada], como ele mesmo dizia, ela ficou num estado de luto como se o tivesse visto morto”.
São Luís IX explicou que Nosso Senhor o havia tirado dentre os mortos para que adotasse a Cruz, montasse um exército e reconquistasse Jerusalém, que gemia desde 1187 sob a tirania muçulmana.
As rainhas Branca e Margarida, os conselheiros reais e as altas autoridades eclesiásticas tentaram de tudo para dissuadi-lo. Mas em vão.
Ele tinha certeza de que fora salvo das fauces da morte para cumprir essa missão, e não por uma simples misericórdia de Deus. Do antigo reino de Jerusalém só ficava São João d’Acre e mais alguns portos periclitantes.
O espírito sobrenatural da Cruzada estava morto. São Luís IX o ressuscitaria com o fervor dos tempos de Godofredo de Bouillon e seus companheiros de expedição.
Prevendo uma ausência longa ou definitiva, Luís IX quis, antes de se lançar na Cruzada, apalpar o estado do reino, dar proteção aos mais fracos e conciliar os poderosos.
Em 1247, inspetores percorreram o reino como outrora os missi dominici de Carlos Magno. Dominicanos e franciscanos, Ordens que viviam um momento de fervor e seriedade, iam em duplas anotando as queixas dos pobres nos campos e nas cidades, sem tomarem contato com os bailios (governadores de província, ao mesmo tempo juízes, chefes militares e coletores de impostos).
O inquérito permitiu a São Luís modificar o Conselho Real, trocar três-quartos dos bailios e definir os limites precisos de seus poderes.
Também moderou os poderes judiciários da alta nobreza, fazendo com que todo o reino pudesse apelar ao rei como juiz supremo.
São Luís também estabeleceu regulamentos relativos aos costumes das corporações de ofício — os “sindicatos” da época — concedendo-lhes autonomia e estabilidade.
Reorganizou a Prefeitura de Paris e criou uma moeda: o escudo de ouro e o grand denier de prata para facilitar o comércio, pôr fim às fraudes e moralizar a atividade econômica.
Um governante hodierno que mexesse tanto nos costumes do país seria antipatizado, mas o carisma real e a luz da santidade do monarca brilharam nessas reformas e ele foi abençoado pelo povo.
O escudo de ouro foi a primeira moeda, no sentido moderno, emitida por um rei. Nela estava cunhado o escudo — de onde o nome — com o brasão fleur de lisé do santo rei.
O escudo de São Luís foi padrão até a Idade Moderna, sendo reeditado pelos seus sucessores e imitado por bispos, príncipes e senhores que emitiam moeda, e até mesmo pelos Papas, porque era digno de fé e isento de fraude.
A moeda foi conservada por muitos como uma medalha religiosa! Assim, houve um plebiscito mudo aprovando a confiança dos franceses em seu rei.
Continua no próximo post: Árbitro da Cristandade