O sonho de Ruperto

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pesadeloNuma dessas andanças pelas ruas da cidade, que todo paulistano se vê constrangido por mil razões diferentes a fazer, encontrei casualmente meu amigo Ruperto. Conhecíamo-nos de longa data.

Nada de especial, pois, em haver um encontro casual, a não ser uma circunstância. Já de longe, notei que ele parecia desnorteado, como que afligido por algum problema que lhe afetara os nervos e esbugalhara os olhos. Tão preocupado estava, que ia passando por mim sem me ver. Atalhei-lhe o passo.

— Então Ruperto, como vai?

Ele, com uma voz rouca que não lhe era habitual, respondeu:

— Estou transtornado. Não sei se procuro um neurologista ou um sacerdote, talvez um exorcista.

— Mas o que houve, Ruperto?

— Tive um sonho.

— Ora, bobagem, quem se preocupa com sonhos!?

— Foi um pesadelo… terrível!

A essa altura eu estava profundamente penalizado com o pobre Ruperto, e também surpreso. Havia ali próximo um desses bares que colocam mesinhas na calçada. Convidei-o a tomar um refresco. Ele aceitou. Sentamo-nos, mandei vir um refresco de maracujá com uma porção de pão de queijo.

— Você não sabe o que eu vi numa noite dessas, disse-me ele em tom de desabafo. Apareceu-me um homem, não sei se homem, se fantasma, se extraterrestre ou demônio, não sei. Um de seus olhos era de um azul faiscante e odiento, e o outro, verde langoroso e triste. Ambos ficavam o tempo todo girando. De uma das narinas saía uma espécie de fogo ardente, e a outra era murcha e sem expressão. Os cabelos estavam divididos ao meio por uma risca; de um lado bem penteados, como assentados por um fixador; do outro, estavam em convulsão, como se fosse um nó de cobras em movimento. Enquanto falava comigo, a altura do personagem ora aumentava, ora diminuía; também ele ora ficava mais magro, ora mais gordo. Nele, nada combinava com nada. Aterrador.

— E o que lhe disse esse homem? — perguntei, fazendo esforço para não me deixar tomar pelo estado emocional de meu amigo.

— Disse-me que se chamava Contradição Ululante, e que era ele quem dominava o estado de espírito do mundo atual. Em seguida passou a desfiar vários pontos daquilo que denominava ser o seu “reino” sobre as almas.

Mandei vir nova dose de maracujá e Ruperto prosseguiu.

— O tal homem começou a falar da contradição da Ideologia de Gênero. “Fui eu quem introduzi esse conceito nas mentes”, asseverou. “Você quer maior contradição do que essa? O menino que acha que é menina e a menina que acha que é menino! Totalmente absurdo. Mas eu introduzi isso nas mentes de alguns e eles propagam. E afirmam, contra toda evidência, que o sexo de cada um é opcional e não natural. Com isso eu consigo transtornar as psiques das pessoas, e elas já não se guiam mais pela razão e pela evidência, mas por teorias inventadas e absurdas. Eu sou a contradição”.

— Ele citou mais algo?

— Sim. Falou da ecologia. “Inventei uma série de catástrofes naturais que poderão ocorrer se não se renunciar ao progresso”, disse ele. “Quero impor no mundo o miserabilismo socialista, todos iguais na miséria. E as pessoas não se dão conta de que, para evitar um risco futuro imaginário, lançam-se desde já num poço de pobreza total, sob a férula de um governo mundial. Além disso, deixam de crer em Deus e em sua providência, para adotar o culto fetichista da chamada Mãe Terra. Mais uma vez, a contradição. Eh, eh, eh!”, ria ele de modo sinistro.

— Incrível tudo isso!

— Mas há mais. O homem prosseguiu. “Fiz Obama ir a Cuba para apoiar a ditadura comunista em nome da democracia, falar de direitos humanos num regime que não cessa as perseguições, convidar os dissidentes para um encontro, quando estes estão presos ou são proibidos pelo governo de sair de casa. Também o Papa Francisco esteve em Cuba, prestigiando o ateísmo em nome da religião. Oh, como eu amo a contradição!”.

A essa altura, Ruperto estava um pouco mais distendido. Não sei se pelo fato de poder abrir-se a um amigo ou se por efeito do maracujá. Por via das dúvidas, mandei vir mais refresco. E ele prosseguiu.

— Em certo momento, o homem tornou-se especialmente zombeteiro: “Eu faço usar a palavra ‘diálogo’ a todo propósito para evitar que as pessoas reajam contra o socialismo, o comunismo, o terrorismo etc. A cada novo avanço do socialismo, ou a cada novo crime do terrorismo, eu inspiro às vítimas que é preciso dialogar, e assim o mal avança sem obstáculos. Elas não se dão conta da contradição que há em querer dialogar com quem quer destruí-las. Veja por exemplo o diálogo do governo colombiano com os guerrilheiros das FARC!”.

— Ele falou mais de democracia?

— Sim, insistiu no fato de que grande número de pessoas não quer nenhuma dessas capitulações nem desses horrores, mas tudo continua sendo feito em nome do povo e da democracia. E todos têm que engolir essa contradição. Ele disse ainda muitas outras coisas, mas não me lembro de todas.

Eu realmente estava impressionado com essas “revelações” feitas pelo tal indivíduo do sonho, mas o sol já declinava e era preciso ir. Pedi a conta ao garçom, e quando já estávamos de pé, Ruperto atalhou.

— Ah! Estava me esquecendo de uma contradição importante. Foi a última coisa que me disse aquela figura fantasmagórica, antes de eu acordar do sonho. Trata-se de uma contradição particular imposta aos católicos. Disse o homem: “Eu consegui que um Pontífice, especialmente encarregado por Jesus Cristo de pregar a verdade a todos os povos, nem sequer fale em apostolado, conversão e proselitismo. E que, quando multidões de imigrantes de outras religiões invadem a Europa e põem em risco o que ainda resta de civilização cristã, a preocupação dele não é com os males que tal situação acarreta aos católicos, mas sim com que muçulmanos, hinduístas e outros sejam acolhidos e bem tratados. Ademais, quando pobres miseráveis, oriundos de nações de estrutura socialista ou tribal, buscam os países capitalistas para poderem sobreviver, o acusado por essa situação é o capitalismo e não os regimes desumanos de onde eles provêm. Eh eh eh, eu sou o rei da contradição”.

*    *    *

Confesso que depois dessa conversa, o aterrado era eu, mais do que Ruperto. Não podia livrar-me da terrível impressão de que o monstruoso personagem que aparecera a meu amigo dissera a verdade e só a verdade sobre o mundo atual.

Sentia necessidade de limpar-me da sensação fuliginosa que me impregnava, por viver no meio da contradição, e fui em busca de algo que me fizesse imergir nas águas límpidas da lógica e do bom senso. Foi então que relembrei um episódio da vida de Santo Tomás de Aquino, que realça quanto a imensa sabedoria desse luminar da Igreja lhe vinha de sua união com Deus, sem a qual tudo é trevas, como também ignomínia e contradição.

Certa vez, diante de um Crucifixo em Nápoles, ouviu ele estas palavras de Jesus: “Bem escreveste sobre Mim, Tomás; o que desejas que te dê em recompensa?” Ao que Santo Tomás respondeu:“Nada, a não ser Vós mesmo, Senhor” (Nihil, nisi Te, Domine).

Para o leitor, que como eu vive cercado por esse mundo de contradições, resolvi contar todo esse episódio. O título poderia também ser: Nisi Te, Domine.

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