Voltamos aos tempos de Nero?

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O período da Quaresma e Semana Santa é o mais propício para meditarmos sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.E um meio adequado de o fazermos é considerar o que se passa com membros de seu Corpo Místico – isto é, os filhos da Igreja – disseminados pelo mundo, que sofrem perseguições e até o martírio por fidelidade à sua Lei. Perseguições cruéis, crescentes e generalizadas, evocativas daquelas que imortalizaram o mártir cristão especialmente a partir de 64 dC, no reinado do Imperador Romano pagão Nero.

Numa época como a nossa, na qual se afirma estarem sendo eliminados todos os “preconceitos”, em que as minorias discriminadas se emancipam e adquirem seus direitos, poucos se dão conta de um fato: em muitos lugares, retornou-se praticamente à época das grandes perseguições religiosas. Isso não é exagero. Basta ler uma resenha do que está ocorrendo em várias partes do mundo, para que se comprove essa afirmação.

É o escopo deste artigo: levar ao conhecimento dos leitores notícias que atestam a verdadeira perseguição de cunho religioso promovida hodiernamente em várias partes do globo. Tais notícias, foram coletadas em sua maioria no ano findo, extraídas da imprensa diária e de agências noticiosas fidedignas. Quando não for mencionada a fonte, tratar-se-á sempre de notícias da Agência Vaticana Zenit.

Ásia em geral

Sri Lanka

Apagavam-se as luzes do ano de 1999 quando a Agência Zenit noticiou o massacre de 35 católicos, com um saldo de 60 feridos, numa igreja em Sri Lanka, vítimas dos rebeldes da Frente de Liberação Tamil Tigres do Eelam –FLTTE (21-11-99).

Timor

Também no final de 1999 foram encontrados, em três valas comuns no Timor, os corpos de 25 católicos, sendo três de sacerdotes assassinados a tiros e facadas. A mortandade teria ocorrido em 6 de setembro. “De acordo com o relato de testemunhas, naquele dia muitas pessoas estavam refugiadas nas igrejas de Santa Maria e de Nossa Senhora de Fátima, em Oeuli, fugindo de um grupo de milicianos, quando outro, mais numeroso e apoiado por policiais indonésios, invadiu os dois locais. Segundo o Vaticano, mais de 100 pessoas morreram no ataque às duas igrejas” (“Jornal do Brasil”, 27-11-99).

Indonésia 

Na ilha turística de Lombok, 600 cristãos fugiram por temor do ressurgimento da onda de violência perpetrada pelos muçulmanos, que resultou na semana anterior em cinco mortos e no incêndio de igrejas, moradias e comércios de cristãos (23-1-00).

l Centenas de cristãos, fugitivos da perseguição maometana, morreram em naufrágio na Indonésia (“O Estado de S. Paulo”, 30-6-00).

l Vários carros-bomba explodiram em frente às cinco principais igrejas de Jacarta e outras localidades na noite de Natal, ocasionando um triste saldo de 10 mortos e dezenas de feridos (“Jornal da Tarde”,  25-26/12/00).

Fanáticos islâmicos preparam-se para a “guerra santa” nas Ilhas Molucas.

Ilhas Molucas

l Pelo menos 44 pessoas morreram e centenas ficaram feridas em ataques de muçulmanos a populações cristãs (“Folha de S. Paulo”, 31-5-00).

l Em mais um ataque dos muçulmanos, cerca de 160 cristãos, incluindo mulheres e crianças, foram massacrados. A igreja e as casas foram incendiadas. O total de mortos eleva-se já a três mil (“Folha de S. Paulo”, 21-6-00).

l Arrasada a aldeia cristã de Waai. Há pelo menos 22 mortos (10-7-00).

l Cristão é decapitado, e igreja queimada. Testemunhas dizem que os ataques islâmicos são dirigidos por oficiais do Exército (16-7-00).

l 93 cristãos, que se negaram a abraçar o islamismo, foram assassinados. As vítimas dos choques entre cristãos e muçulmanos, desde que começaram as hostilidades em janeiro de 1999, já atingem a 4 mil. Mais de meio milhão de pessoas tiveram que emigrar (6-12-00).

Dom Alan de Lastic, Arcebispo de Nova Delhi:”Forças [anticristãs] tentam intimidar os cristãos”

Índia

l O Bispo de Verapoly denunciou que em Kerala – o Estado de maior população católica da Índia e apontado como exemplo de convivência interconfessional – aumentavam os ataques contra casas religiosas e escolas católicas (21-3-00).

l O Arcebispo de Nova Delhi, D. Alan de Lastic, denunciou o incremento de hostilidades contra a comunidade católica na Índia, que sofreu nas últimas semanas diversos ataques por parte de grupos radicais nacionalistas.

“Definitivamente há uma estratégia e um plano em nível nacional  ….  estas forças buscam intimidar os cristãos”, afirmou a respeito o Prelado, também Presidente da Conferência Episcopal Indiana. Num só dia, quatro igrejas católicas foram objeto de atentados a bomba em Andra Pradesh, Goa e Karnataka. Um sacerdote aparecera morto dois dias antes (“Noticias Eclesiales”,  9-6-00).

l No Estado de  Bihar, o sacerdote Remiz Karketta, de 46 anos, foi assassinado com um tiro e depois atropelado. “O assassinato do padre Karketta constitui o mais recente da série de atos de cruel violência que nestes meses golpearam expoentes das comunidades cristãs da Índia”, explica em sua primeira página a edição italiana do “L’Osservatore Romano” (14-7-00).

l O Padre Victor D’ Souza, Administrador diocesano de Nova Delhi, denuncia violação de residências de sacerdotes, agressões a religiosas e profanações de locais de culto. A Conferência Episcopal da Índia também expressou sua preocupação pelos contínuos ataques que sofrem as instituições cristãs em todo o país (10-9-00).

lA organização fundamentalista indiana mais radicalmente anticatólica propôs que o clero rompa com Roma, expulse os missionários estrangeiros e funde uma Igreja Patriótica como existe na China. Os Bispos indianos rejeitaram indignados tal proposta. (12-10-00).

l O Arcebispo de Nova Delhi, em carta ao Primeiro-Ministro indiano, denunciou os contínuos e ferozes ataques contra os católicos na Índia: no domingo, 26 de novembro, à noite, uma centena de fanáticos apedrejaram os cristãos em Kolar, distrito de Karnataka. No mesmo domingo, fanáticos armados saquearam o Convento de St. Mary, em Jwalapur, próximo de Haridwar, na Diocese de Merut, em Uttaranchal, depois de manter seqüestradas as monjas dessa casa religiosa. Em outro incidente, uma capela de pequena comunidade de 100 fiéis de uma minoria étnica em Surat, distrito de Gujarat, foi saqueada no domingo à noite.

De outro lado, o Bispo de Gwalior, Joseph Kaithathara, em mensagem à Conferência Episcopal da Índia, revelava que o padre C. Alphonse, de 64 anos, havia sido brutalmente atacado por uma turba na terça-feira, cerca da uma hora da manhã. Segundo o Prelado, um grupo entrou na casa do sacerdote e o golpeou selvagemente com paus e varas de ferro. A vítima foi ferida na cabeça e teve fraturas nos braços e pernas, além de quebrados vários dentes. Foi levada ao Hospital Médico Universitário de Gwalior.

Por sua vez, o  “Hindustan Times” informa a ocorrência de um incidente em Bokaro,  Jharkhand, em que “algumas dezenas de fanáticos assaltaram uma igreja de Bokaro e saquearam seu interior” (10-12-00).

China

É detido pela polícia o Bispo Han Dingxiang, bem como o sacerdote Zhao Hongxi, ambos membros da Igreja clandestina católica, perseguida pelo regime (26-1-00).

l Segundo a agência vaticana Fides, em “dezembro as autoridades chinesas incendiaram e dinamitaram duas igrejas que não tinham sido autorizadas pelo governo chinês, na Diocese de Wenzhou. Ainda de acordo com a agência, dezenas de sacerdotes foram seqüestrados pela polícia nos últimos meses” (“O Estado de S. Paulo”, 1-2-00).

l Segundo a agência da Santa Sé, a perseguição na China “assumiu proporções espantosas”. Dezenas de sacerdotes foram seqüestrados, seis Bispos estão “desaparecidos”, as famílias católicas são discriminadas e seus filhos excluídos das escolas. Membros da Igreja Católica em Hong-Kong afirmam que documento secreto do Governo revela que, se a repressão não der certo, os católicos serão sumariamente exterminados (31-1-00).

l Foi detido o Arcebispo católico Yang Shudao (14-2-00).

l Foram presos dois Bispos, um deles com 81 anos, e um sacerdote, fiéis ao Papa; a polícia torturou selvagemente outro padre, arrasou o altar, espancou fiéis e aprisionou catequistas e religiosas. A Fundação Cardeal Kung informou que é a terceira vez em três semanas que ocorrem prisões e maus tratos contra membros da Igreja Católica clandestina, tanto de Bispos quanto de sacerdotes, religiosas e leigos (18-9-00).

lO governo proíbe cerimônias públicas em honra dos novos santos canonizados pela Igreja. Os fiéis de Hong-Kong desafiaram o regime, realizando as comemorações (31-10-00).

l O regime comunista destruiu 1.200 igrejas na província de Zhejiang. O alvo principal foram as católicas (13-12-00).

lCentenas de igrejas de Wenzhou, no sul da China, foram fechadas ou destruídas. Nessa cidade reside uma das comunidades católicas mais importantes da China, cuja origem remonta à chegada dos missionários estrangeiros no século passado (“O Globo”, 24-12-00).

Filipinas

Um sacerdote claretiano e três acompanhantes foram as novas vítimas da guerrilha islâmica nas Filipinas.

Vietnã

O Pe. Tadeo Nguyen Van Ly, da cidade de Hué, lançou um apelo público aos Bispos para que cessem as reuniões com o governo vietnamita,  os pedidos sistemáticos de autorizações às autoridades comunistas, e denunciou a falta de liberdade religiosa. Entre o período do paganismo e o advento do comunismo houve mais de 130 mil mártires católicos no Vietnã.

E mais recentemente — por ter denunciado violações à liberdade religiosa no Vietnã — o referido sacerdote foi preso por agentes do governo da província de Thua Thien Hue.

Segundo a Agência ACI, de 8 de março p.p., o comitê do governo comunista do Vietnã declarou: “O cidadão (sic!) Nguyen Van Ly cometeu ações que violam as leis e atentam contra a segurança nacional”. E mais tarde acrescentou: “Ao senhor (sic!) Ly daremos tempo para educar-se e condições favoráveis para corrigir-se de seus erros”.

Tal declaração merece um comentário. Desde quando propor a cessação de reuniões com um Governo marxista, além de lançar denúncias, constituem motivo para se efetuar uma prisão? E que tipo de regime é este que trata um sacerdote de “cidadão”? Só mesmo num país comunista isso sucede.

E onde estão os denominados defensores dos direitos humanos? Eles não têm sequer uma palavra de protesto contra regimes marxistas como o vietnamita,  que violam os mais elementares direitos humanos? E não são eles, junto com toda a coorte de inocentes úteis, que insistem em repetir que o comunismo morreu? Ao que parece, o seu discernimento e sua memória são seletivos: eles “ignoram” o comunismo metamorfoseado do Ocidente e “esqueceram-se” da existência de países como China, Vietnã, Coréia do Norte e Cuba…

Católicos sudaneses, persguidos pelo regime islâmico de Cartun, reúnem-se para rezar ao ar livre, no sul do país.

África em geral

Sudão

l De acordo com o boletim Corrispondeza Romana(18-12-00), o governo islâmico sudanês expulsou aChristian Solidarity International, organização que havia resgatado 15.447 escravos sudaneses (na maioria católicos) desde 1995.

l Bombardeio aéreo lançou quatro bombas sobre escola católica no sul do país, matando 14 crianças e ferindo inúmeras outras (“Folha de S. Paulo”, 12-2-00).

l Aviões da Força Aérea sudanesa bombardearam mais uma escola católica no sul do país. Foram lançadas 40 bombas de metralha quando estavam reunidos 700 alunos. Esse ataque foi o quarto bombardeio em nove meses, lançado pelas forças de Cartum, capital do Sudão, que busca islamizar todo o país (1-12-00).

l O regime islâmico sudanês pratica largamente a escravidão de moças cristãs do sul do país (“Jornal do Brasil”, 10-12-00).

Nigéria

lO Estado de Kano adotou projeto instituindo a lei islâmica (25-1-00).

l Em Kaduna, norte da Nigéria, a luta iniciada com protestos dos cristãos contra a adoção da lei islâmica em vários Estados já deixou 300 mortos no país, em dois meses (“Jornal do Brasil”, 23-2-00).

l Conflito étnico‑religioso entre os cristãos Ibos e os muçulmanos Hausas, em guerra desde a semana passada ao norte da Nigéria, estendeu‑se ontem para o Sudeste, onde pelo menos 50 pessoas morreram em tumultos na cidade de Aba (“Jornal do Brasil”, 29-2-00).

Burundi

l Assassinado missionário leigo católico italiano (4-10-00).

l A religiosa italiana Sor Gina Simionato, 55 anos, foi assassinada no domingo passado por guerrilheiros, quando se dirigia com três Irmãs burundianas para participar da missa dominical. Nos últimos 15 dias já foram assassinados quatro missionários italianos (17-10-00).

Ruanda

O regime ruandês promoveu uma caçada contra sacerdotes católicos acusados de participar de “genocídio” (26-11-99).

Congo

Guerrilheiros seqüestram o Arcebispo Emanuel Kataliko, descontentes com seu sermão de Natal (“O Globo”, 16-2-00).

Egito

Na véspera da chegada de João Paulo II ao país, islamitas assassinam pelo menos 19 cristãos. A um deles, de 24 anos, “os agressores disseram que parariam de espancá-lo se dissesse que era muçulmano. Ele respondeu que preferiria ser assassinado, e então esmagaram sua cabeça e depois cortaram seus braços” (“O Estado de S. Paulo”, 25-2-00).

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Católicos perseguidos  em Cuba 

Não nos alongaremos em relatar as perseguições que ocorrem em Cuba, pois o noticiário a respeito é mais freqüente. Mencionaremos apenas algumas breves e recentes notícias. Uma delas, distribuída pelaAgência Católica de Informações (ACI), narra que membros do Departamento de Assuntos Religiosos do Partido Comunista Cubano, de Palma Soriano, invadiram a casa de uma  católica, Elena Macías, agrediram-na e destruíram uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo,  lançando os pedaços desta no rosto da Sra. Macías.

A Agência Zenit denuncia que o Ministério da Educação de Cuba proíbe que os alunos de escolas primárias usem objetos religiosos, como medalhas, santinhos, cruzes, escapulários e outros símbolos católicos. Segundo esse ministério marxista, tal medida foi adotada com a finalidade de que as expressões religiosas não obstruam o trabalho político-ideológico desenvolvido com os alunos (sic!).

Encerramos este relato com uma afirmação do Bispo de Verona, Mons. Flavio Roberto Carraro, Presidente da Comissão para a Evangelização dos Povos, da Conferencia Episcopal Italiana. Regressando de Cuba o Prelado declarou ao diário italiano “Avennire”: “A situação da Igreja em Cuba, é de sofrimento”. Ele cita um documento confidencial do Comitê central do Partido Comunista de Havana, do qual constam instruções para destruir o sentimento religioso latente em muitos cubanos.

Rezemos também pela perseverança de nossos irmãos católicos perseguidos e martirizados na ilha-prisão de Fidel Castro. Muitos deles  jazem nas sórdidas masmorras comunistas, seviciados, sem qualquer assistência espiritual, pois em Cuba ela é proibida.

Martírio de Santo Estêvão – Annibali Carracci (1603), Museu do Louvre, Paris.

Algumas considerações sobre o martírio

Em face desse sinistro quadro, uma pergunta vem à mente: serão mártires todos os católicos mortos nessas lutas e perseguições?

Para responder a tal pergunta, é útil resumir brevemente aqui a doutrina católica sobre a matéria.

Noção geral

A palavra “mártir” provém do grego e significa “testemunha”. Ela foi empregada nos primeiros tempos do Cristianismo para indicar os Apóstolos e os primeiros discípulos que, tendo presenciado os milagres e a Ressurreição de Jesus, derramaram seu sangue para dar testemunho disso. Posteriormente, o termo foi utilizado num sentido mais amplo, para designar todos os cristãos que preferiram a morte a renegar sua Fé.

Na linguagem eclesiástica, a palavra “martírio” refere-se, pois, ao testemunho da verdade cristã, selada com o sangue, até o sacrifício da própria vida.

Tendo sido Nosso Senhor Jesus Cristo o Mártir por excelência, mártir é todo aquele que, à semelhança de Cristo, dá o testemunho da verdade com a  própria vida. Assim sendo, Santo Estêvão foi o primeiro mártir. “A história de Estêvão é uma repetição da história de Cristo. Ser santo (ou mártir), para os primeiros cristãos, era morrer não só por Ele mas como Ele …. Assim como o batismo significava morrer com Ele e ressurgir para a plenitude da vida eterna, o martírio era o selo de uma total conformidade do santo com Cristo” (1) .

O martírio constitui um ato supremo da virtude da fortaleza e o mais perfeito ato de caridade.

Características

De acordo com os teólogos, três são as condições para que haja verdadeiro martírio:

1 – Que se sofra verdadeiramente a morte corporal.- O mártir é considerado a perfeita testemunha da Fé cristã, aquele que deu a prova absoluta de seu amor a Cristo. Ora, a vida é o maior bem natural do homem. Logo, dar a vida por Cristo é a maior prova de amor a Ele. Aquele que conserva a vida do corpo ainda não demonstrou de modo absoluto que despreza todas as coisas terrenas por amor de Cristo. Assim, antes de ter dado a vida pelo Senhor, ninguém pode ser chamado verdadeiro mártir. Por isso, aqueles que sofreram tormentos por amor a Deus, mas não até a morte, não podem ser chamados mártires no sentido perfeito e completo do termo. A Igreja não chama mártires senão aqueles que morreram por Cristo, e reserva o título de confessores àqueles que sofreram o exílio, a prisão, a perda dos bens, e mesmo a tortura para confessar sua Fé.

2 – Que a morte seja infligida por ódio à verdade cristã.- A verdade da Fé cristã exige não só a adesão interna às doutrinas reveladas, mas também a profissão externa, por meio de palavras e de atos, mediante os quais se demonstra a própria fé. Todos os atos de virtudes, por se reportarem a Deus, são, de algum modo, profissões de fé, pois é através da fé que sabemos que Deus premia alguns atos e castiga outros.

Por isso, não somente a fé pode ser causa do martírio, mas toda virtude, contanto que se relacione com Deus; assim São João Batista é honrado como mártir por haver sustentado os direitos da fidelidade conjugal. Do mesmo modo, São João Nepomuceno foi canonizado como mártir por se recusar a violar o segredo da Confissão; e Santa Maria Goretti, para preservar a pureza.

Requer-se, portanto, que a morte seja infligida por um inimigo da Fé divina ou da virtude cristã. Por conseguinte, não são mártires, no sentido próprio do termo:

a –  aqueles que suportaram a morte em virtude de moléstia contagiosa,  contraída de doentes dos quais tratavam por amor a Deus (estes podem vir a  ser considerados “confessores”);

b – os que sofreram a morte na defesa de uma verdade natural;

c – os que sofreram a morte na defesa da heresia.

Também é necessário, da parte do perseguidor, o ódio à Fé ou a toda outra boa obra, desde que ordenada pela Fé de Cristo. E quanto a isso, pouco importa que o perseguidor seja pagão, herege ou mesmo católico; basta que ele inflija a morte por ódio a uma virtude que se pode relacionar com a Fé; assim Santo Estanislau de Cracóvia, São Tomás de Cantuária e São João Nepomuceno foram postos à morte respectivamente por Boleslau, Rei da Polônia, Henrique II da Inglaterra e Wenceslau, Rei da Boêmia, que no entanto eram católicos.

Contudo, não é necessário que o perseguidor reconheça expressamente que age por ódio à fé; basta que este seja seu verdadeiro motivo, mesmo quando ele invocar um outro pretexto. É o que confirma a História, pois Nero começou a perseguição pretextando o incêndio de Roma em 64 dC., que ele atribuía caluniosamente aos cristãos.

3 – Que a morte seja aceita voluntariamente.- Um adulto que é morto durante o sono, por ódio à Fé, normalmente não é verdadeiro mártir. Porém, muitos autores ensinam que um adulto que tenha abandonado tudo para seguir o Senhor, e é morto pelos inimigos da Religião enquanto está dormindo, em ódio à Fé cristã, é verdadeiro mártir, porque em sua entrega total estava implícita a aceitação voluntária de tudo o que viesse em conseqüência dessa entrega, inclusive a morte.

Na aceitação voluntária da morte está compreendida a ausência de resistência. Pois se a pessoa se defende, pode ser que tenha querido salvar a vida, não entregá-la. Defender a própria vida é legítimo (e em muitos casos é até obrigatório), mas não caracteriza o martírio.

Essa exigência faz levantar uma pergunta: se o soldado que morre numa guerra em defesa da Fé pode ser considerado mártir. Santo Tomás de Aquino parece indicar que se pode considerar como mártir o soldado que morre em uma guerra movida para a defesa da Fé.  Para que haja martírio, entretanto, é necessário uma guerra entre fiéis e infiéis, não por motivos políticos, mas por causa da Religião; então aqueles que lutam em prol da Religião católica, contra os infiéis, morrem mártires, porque a morte lhes é infligida por ódio à Fé . E sua resistência não é um obstáculo a seu título de mártir, porque, dizem os teólogos, eles lutaram primariamente não para defender suas vidas, mas por causa da Igreja e da verdadeira Fé contra os adversários de Cristo; eles não defendem sua vida senão secundariamente, na medida em que esta é necessária à Igreja e à Fé cristã.

Pode uma criança, ainda não dotada do pleno uso da razão, ser mártir? A resposta é positiva. Para que sejam mártires, basta que sejam mortas por Cristo, e isso mesmo no seio materno. Nesse sentido, convém lembrar o caso célebre dos Santos Inocentes, que a Igreja sempre honrou como mártires.

Nas causas de beatificação e canonização dos mártires são examinados todos esses elementos. Uma vez que eles sejam comprovados, fica dispensado o exame de heroicidade das virtudes e, algumas vezes, também a prova complementar dos milagres.

Eficácia e efeitos do martírio

1 – Justifica o pecador. – O martírio confere o estado de graça ao pecador, seja ele adulto ou criança. Para o adulto, entretanto, é preciso que venha unido pelo menos a uma atrição ou contrição imperfeita dos pecados cometidos. Na aceitação voluntária da morte por amor de Deus ou da virtude já está implícita a dor pelos pecados.

Pessoas adultas não batizadas, mortas por ódio à Fé, são igualmente justificadas e vão para o Céu.

Explica-se isso porque  o martírio supre o batismo de água e produz os mesmos efeitos: apaga o pecado original, e os pecados atuais quanto à culpa e à pena. É o chamado “batismo de sangue” (cfr. Mt 10, 32 e 39). Entretanto, se o adulto é catecúmeno (em fase de preparação para ser batizado), ele deve, tanto quanto possível, receber o batismo de água antes do martírio.

Se se trata de um adulto já batizado, deve ele, se possível, confessar seus pecados a um padre, ou pelo menos lamentá-los e receber a Sagrada Comunhão, porque esses preceitos obrigam, em decorrência do direito divino, no momento da morte, e o mártir não pode ser dispensado. Ressaltamos que isso é requerido só quando há possibilidade, ou seja, no caso em que já se prevê o martírio e existem condições de se preparar para ele. Por exemplo, antes de ir a uma batalha, numa guerra de Religião.

2 – Destrói a culpa venial e a pena temporal de todos os pecados – Sendo um perfeito ato de caridade, o martírio destrói nos justos (ou seja, nos que estão em estado de graça) toda a culpa venial e toda a pena temporal devida pelos pecados passados. Por isso, todos os mártires entram imediatamente no Céu, sem passar pelo Purgatório.

3 – Produz um aumento na graça e na glória – O martírio confere ainda aos justos um aumento notável na graça e na glória.

4 –  Merece especial recompensa no Céu – Por fim, o martírio merece uma recompensa especial no Paraíso celeste, a que Santo Tomás chama uma alegria, um prêmio privilegiado, correspondente a uma privilegiada vitória.

Martírio espontâneo

Sendo o martírio um ato de virtude, é louvável oferecer-se espontaneamente para ser martirizado? Como explicar que a Igreja tenha visto nessa atitude uma pretensão e um perigo?

A razão dada pela Igreja é que não é permitido oferecer aos outros a ocasião de agir com injustiça; seria um pecado de cumplicidade. Entretanto, a Igreja aceitava como martírio esse fato quando se tratava daqueles que tinham tido a fraqueza de abjurar a Fé e queriam reparar sua falta. Os teólogos admitem que uma especial inspiração do Espírito Santo pode explicar essa iniciativa, assim como muitas outras causas, entre as quais Santo Tomás cita o zelo pela fé e a caridade fraterna.

São Gregório Nazianzeno resume numa sentença a regra a ser seguida nesses casos: procurar a morte é mera temeridade, mas recusá-la é covardia.

Tendo isso em vista, pode-se habitualmente desejar o martírio e pedi-lo a Deus? A resposta é que o próprio Nosso Senhor nos encorajou a isso. Por outro lado, os teólogos não têm trabalho nenhum em demonstrar que o desejo do martírio não compreende de nenhum modo a aceitação do pecado cometido pelo perseguidor, nem a menor cumplicidade com ele.

Em sentido contrário, é lícito fugir da ocasião de martírio? Sim, dizem os teólogos, e também disso nos deu exemplo Nosso Senhor Jesus Cristo fugindo dos fariseus, quando queriam apedrejá-Lo. Em certas circunstâncias, uma fuga dessas não pode, de nenhum modo, ser assimilada a uma negação da Fé; é mais bem uma confissão virtual, pois que é a aceitação de grandes males, como o exílio, por apego à Fé. Entretanto, os Bispos e aqueles que têm o encargo de almas não podem fugir, se sua fuga importa no risco de provocar a dispersão do rebanho.

Não se pode também provocar os perseguidores. Por isso é que quebrar ídolos foi condenado pelo Concílio de Elvira (ano 306). A provocação é lícita, caso pareça que ela venha de uma inspiração do Espírito Santo, ou se as circunstâncias mostrarem que o servidor de Deus devia agir desse modo pelo bem da fé e da Religião, ou por mandado da autoridade pública.

Martírio de Santo Inácio de Antioquia

Exemplo de um grande Santo

Sobre o desejar o martírio e mesmo procurá-lo, convém lembrar o  magnífico exemplo de Santo Inácio de Antioquia, no século II, discípulo de São João Evangelista. Estando preso em Roma para ser executado, soube que cristãos eminentes tentavam libertá-lo e estavam rezando nessa intenção. Escreveu-lhes então no sentido de que desistissem de tal intento, estas belas palavras:“Peço-lhes que não dispensem uma bondade inoportuna em meu favor. Deixem que eu seja devorado pelas feras, através das quais chegarei à presença de Deus. Eu sou o trigo de Deus e é preciso que eu seja triturado pelos dentes dos animais selvagens para tornar-me puro pão de Cristo” (2). O que realmente se realizou.

*    *    *

Não poderíamos terminar este artigo sem externar uma lamentação: o Coliseu, local do martírio de tantos cristãos, verdadeira relíquia da Cristandade, foi recentemente restaurado e reaberto… para espetáculos! Esse imponente monumento romano, erigido pelo Imperador Tito por volta do ano 80 dC., assistirá agora a outra sorte de espetáculos; não mais os proporcionados pelos milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram as feras, derramando seu sangue por Cristo, mas por artistas de teatro encenando peças mundanas… (3)

Notas:

1 – Kenneth L. Woodward, A Fábrica de Santos, Editora Siciliano, 1992, p. 53.

2 – Kenneth L. Woodward, op. cit., p. 53.

3 – Cfr. “Folha de S. Paulo”,  20-7-00.

Outras obras consultadas:

– The Catholic Encyclopedia, verbete “martyr”, p. 736 e ss.

– Dictionnaire de Théologie Catholique, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1928, tomo X, verbete “Martyre”, p. 221.

– La Grande Encyclopédie, Paris, Société Anonyme de la Grande Encyclopédie, tomo XXIII, verbete “Martyr”, E-H.V., pp. 350-351.

– Les Petits Bollandistes, Bloud et Barral, Paris, 1882, tomo II, pp. 165.

– Dizionario di Teologia Morale, Francesco Roberti-Pietro Palazzini,
Editrice Studium, Roma, 1957, verbete “Martirio”.

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Plinio Corrêa de Oliveira, quando Diretor do “Legionário”

A Igreja não pode ficar indiferente à perseguição anticatólica

A propósito de perseguições contra católicos, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira escreveu vibrante artigo, em 16 de março de 1930, no “Legionário”, sobre  perseguições que ocorriam  então  na Rússia comunista. Transcrevemos a seguir um excerto dele para ilustração dos leitores:

“Se em circunstâncias como a atual a Santa Sé não tomasse posição ao lado de seus filhos aflitos e perseguidos, se não procurasse consolá-los em suas amarguras e diminuir seus padecimentos, ela daria grande argumento a seus adversários.

De fato, por que se intitularia ela Mãe, se deixasse, indiferente, perecer seus filhos?

De que lhes valeria patrocinar no mundo inteiro a fundação de hospitais, se, indiferente aos seus próprios mártires, desprezasse, soberba, o sangue derramado pela Fé Católica e que, segundo a Bíblia, brada aos Céus?

Poder-se-á, é certo, objetar que a perseguição é tão pequena, que não mereceria uma tão enérgica repulsa. Tal argumento, porém, mal merece as honras de uma resposta.

Admitindo (posto que não concordemos com esta asserção) que a perseguição seja minúscula, admitindo mesmo que apenas um fiel tivesse sido morto por causa de sua Fé, perguntamos: não teria a Igreja o direito de protestar com todas as suas forças?

Merecerão os seus filhos menos carinho, pelo fato de serem humildes e pouco numerosos?

Não, o mesmo direito que lhe assiste, de protestar contra o massacre de um país inteiro, lhe assiste de protestar contra a morte de um só de seus fiéis, pois que por todos vela a Igreja, com igual e carinhosíssima solicitude”.

Artigo oferecido pela Revista Catolicismo.

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