24 de Abril
São Fidélis de Sigmaringa, Mártir
(+ Suíça, 1622)
Mártir da ortodoxia católica. Modelo de leigo e advogado católico, de religioso e mártir, São Fidelis de Sigmaringa foi suscitado por Deus no início do século XVII para pregar uma autêntica reforma católica na Suíça alemã, e reconduzir à verdadeira Igreja os que haviam-se deixado seduzir pela heresia de Calvino¹.
À sombra do castelo de Sigmaringa, às margens do Danúbio, no Principado de Hohenzollern,Alemanha, João Rey encontrou refúgio, quando perseguido pelos protestantes de seu país. Natural de Ambers, na Holanda, este descendente de espanhóis, de fé sólida e honestidade comprovada, por suas qualidades morais e administrativa chegou a ser escolhido para conselheiro da Corte e prefeito de sua cidade adotiva. De seu matrimônio com a virtuosa Genoveva de Rosemberg nasceu Marcos, o futuro São Fidelis de Sigmaringa.
Desde tenra idade, o menino professava entranhada devoção à Virgem e horror ao pecado, revelando formação religiosa tão profunda que marcou toda sua vida, coroada com a palma do martírio.
Inteligente e aplicado, Marcos fez com sucesso seus estudos na católica Universidade de Friburgo, na Suíça.
Ainda incerto de sua vocação, de uma coisa estava convicto: que, em qualquer estado de vida, tinha que ser um fiel seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Na delicada fase da adolescência, manteve a inocência batismal por meio de orações, freqüência aos Sacramentos, jejuns e recurso constante à Rainha dos Anjos. Isso lhe era tanto mais difícil, por ter-se tornado um jovem muito bem apessoado.
De elevada estatura, bela presença, semblante sério e sereno, Marcos era respeitado pelos professores e admirado pelos condiscípulos que, por sua ciência e virtude cognominaram-no de o Filósofo Cristão.
Após diplomar-se em direito civil e canônico, Marcos aceitou o convite de alguns condiscípulos, entre eles o Barão de Stotzingen, para servir-lhes de companheiro e guia numa viagem cultural por várias nações da Europa. Conhecendo diversas línguas, Marcos exerceria também a função de intérprete.
Ao aceitar esse convite, que poderia apresentar riscos à virtude, Marcos Rey tinha um propósito: transformar essa viagem de prazer em uma peregrinação religiosa e científica.
Percorreram assim a Espanha, França e Itália, visitando santuários, museus e castelos. Sempre liderados por Marcos, os viajantes não deixaram de ir também aos hospitais levar aos doentes esmolas e conforto moral.
Durante os percursos, o jovem advogado não perdia ocasião para incutir em seus companheiros de viagem o desapego dos bens temporais e uma virtude viril. Dizia-lhes: “Um jovem deve desprezar os vãos adornos; se ele se enfeitar como o faz uma mulher, será indigno da glória, a qual não se pode conquistar senão sofrendo varonilmente as penas da vida e calcando aos pés seus prazeres!”².
Na França, Marcos aceitou desafios de protestantes para debates em praças públicas, confundindo-os sempre. No Franco Condado, ingressou na Confraria de São Jorge, cuja finalidade era a de sepultar os condenados à morte.
Um dia em que seus companheiros afastaram-se com repugnância de um malcheiroso mendigo, disse-lhes: “Vós sereis chamados um dia a ser chefes de povos. Mas ninguém pode mandar nos demais sem antes ter-se vencido a si mesmo. Lembrai-vos de que vossos vassalos são semelhantes a vós e que, tendo as mesmas necessidades que vós, deveis estar dispostos a socorrê-los”³.
Desilusão com advocacia e abandono do mundo
Finda a viagem, Marcos estabeleceu-se em Ensisheim (Alsácia), então capital dos Estados austríacos e sede de governo, para exercer a advocacia.
Como em tudo brilhante, em breve adquiriu fama e clientela. O Dr. Marcos Rey, no entanto, preferia as causas dos pobres às dos ricos, para poder defendê-los gratuitamente. Em suas defesas, jamais utilizou recurso algum que pudesse tisnar a honra da parte contrária.
Certo dia, a Providência iria servir-se de um de seus sucessos para apartá-lo do mundo. Defendendo uma causa justíssima, fê-lo com tanta maestria que encerrou o caso de vez. O advogado da parte contrária esperou-o fora do edifício do fórum, dizendo-lhe: “Desse modo meu jovem colega nunca fará fortuna. Pois nós, advogados, não devemos expor todos nossos argumentos de uma só vez e encerrar os casos. Mas devemos ter uma certa prudente dissimulação para os prolongar, e com isso ir obtendo a remuneração necessária para vivermos condignamente, fruto de tantos estudos”.
A isso o Dr. Rey, que se guiava sobretudo por sua consciência e princípios religiosos, respondeu-lhe com essas palavras que, se observadas hoje em dia, cerceariam muitas injustiças: “Sempre cri que todo gasto inútil e os devidos à incompetência e descuido do advogado, são outras tantas dívidas que este contrai com seu defendido. E nem o tempo nem a experiência far-me-ão mudar de opinião. À nobreza de nossa profissão corresponde proteger o inocente, defender a viúva e o órfão oprimidos ou despojados pela violência ou pela astúcia. Nosso labor não é de mercenários. Devemos ter por glória o fazer respeitar as leis. Quem pense o contrário será indigno de exercer tão nobre profissão”⁴.
Como outro grande santo e famoso advogado, Santo Afonso Maria de Ligório, o Dr. Marcos Rey com isso desiludiu-se do mundo, decidindo-se a abandoná-lo de vez.
Horror à tibieza e ardente zelo apostólico
Depois de fazer os exercícios espirituais, Marcos pediu admissão no Convento capuchinho de Friburgo. Por sugestão do superior, recebeu antes a ordenação sacerdotal. Na festa de São Francisco de Assis de 1612, cantou sua Primeira Missa e recebeu o hábito capuchinho, trocando seu nome batismal pelo que o imortalizaria, Fidelis de Sigmaringa.
Em breve, o fervor e o zelo do noviço chamaram a atenção dos superiores que, tendo em vista seus grandes dotes e talento, destinaram-no à pregação.
Segundo o grande contemplativo deste século, D. Chautard, a alma de todo apostolado – título que deu a seu célebre livro – é a vida interior. Um apóstolo sem vida interior é como uma árvore sem frutos. Essa é, aliás, a regra de todos os santos. Ou ele está sempre procurando as alturas, ou irá decaindo cada vez mais. Por isso, Frei Fidelis, “em suas preces”, diz um de seus biógrafos⁵, “pedia a Deus sobretudo que não o deixasse cair em pecado nem na tibieza”, pois sabia ser esta a maior inimiga da perfeição.
Enquanto pregador, o Santo usava de franqueza apostólica para mover as almas e convertê-las. “Naquela época, em que as desordens e os escândalos estavam na ordem do dia, o célebre pregador capuchinho trovejava contra o vício sem temer as críticas dos católicos tíbios nem as ameaças dos ímpios. Aplicava o ferro candente à chaga de seu século para curá-la mais depressa e do modo mais radical”⁶.
Em 1618, Frei Fidelis foi eleito superior do Convento dos capuchinhos em Rheinfeld, perto de Basiléia, na Suíça. No ano seguinte, elegeram-no para o de Feldkirch, e mais tarde, para o de Friburgo.
No ano de 1621, o exército austríaco invadiu a região dos grises suíços, tendo sido escolhido o Santo para capelão do exército acantonado, nos arredores de Feldkirch. Uma peste atacou as tropas fazendo inúmeras vítimas. Fidelis corria de um a outro dos enfermos a fim de levar auxílios materiais e da Religião, obtendo, junto aos ricos, donativos para comprar os remédios necessários aos feridos. Recorreu para isso ao próprio Arquiduque Leopoldo, generalíssimo do exército austríaco, para socorrer os empestados.
Com sua prudência e caridade apaziguou um grupo de soldados rebelados por falta de víveres.
Vigoroso polemista contra os hereges
“Quando o Arquiduque Leopoldo recobrou certos vales do país dos grises, que antes lhe pertenciam, pensou em enviar para lá missionários zelosos que pregassem a fé católica e fizessem voltar ao grêmio da Igreja os infelizes que dEla haviam-se apartado por causa da pregação dos calvinistas. A Congregação da Propaganda Fidei⁷, de Roma, nomeou São Fidelis chefe dos missionários”⁸.
Foram eles os primeiros a serem enviados a esse povo depois que se perveteram para o calvinismo. Em seu novo campo de apostolado, “cada um de seus passos foi marcado por conversões. Na primeira conferência que manteve com os calvinistas, ele reconduziu à verdade dois nobres. Quem não se convenceria ouvindo esse apóstolo desafiar os ministros protestantes, fazendo cair por terra todas suas argumentações? Vendo-o caminhar com os pés nus catequizando as crianças, procurando as ovelhas desgarradas através do gelo, dos rochedos escarpados e precipícios?”⁹.
É claro que isso só podia suscitar ódio nos inimigos da Fé. E São Fidelis não ignorava que poderia ser morto a qualquer momento. Pelo contrário, afirmou aos seus condiscípulos: “Peço a Deus constantemente duas coisas: passar a vida sem ofendê-Lo, e derramar até a última gota de sangue por Seu amor e pela Fé Católica”¹⁰.
O apóstolo teve mesmo uma premonição sobre seu próximo martírio. Tendo conhecimento de vários complôs para assassiná-lo, “querendo morrer com as armas na mão, começou a assinar: ‘Irmão Fidelis, que dentro em breve será pasto de vermes’”¹¹.
Fortaleza em face do desejado martírio
No dia 24 de abril de 1622, celebrava o Santo Sacrifício da Missa em Grusch, pregando para os soldados a respeito da blasfêmia. De repente, entrou em êxtase, revelando-lhe Deus que aquele dia seria o de sua glorificação. Após a Missa, ficou longo tempo rezando diante do altar, partindo depois para Sevis.
No caminho, caiu nas mãos de soldados protestantes, dirigidos por um ministro da mesma seita. Na recusa de abraçar o calvinismo, respondeu: “Eu vim até vós para refutar vossos erros, e não para aceitá-los”.
A esta resposta, um dos heréticos desferiu-lhe um golpe na cabeça, lançando-o por terra. O mártir conseguiu ainda pôr-se de joelhos e dizer: “Ó Maria, Mãe de Jesus, assisti-me neste transe!”.
Outro golpe lançou-o por terra. Seu crânio foi despedaçado por uma maça e seu corpo apunhalado várias vezes sem piedade. Cortaram-lhe, enfim, uma das pernas para castigá-lo por suas andanças tentando convertê-los. Contava esse herói de Jesus Cristo apenas 45 anos de idade.
O corpo de Fidelis foi levado a Weltkirchen, com exceção da cabeça e da perna esquerda, que tinham sido dele cortados pelos hereges. Estes foram para a catedral de Coire.
Devido ao grande número de milagres que desde então começou a se operar pela intercessão de São Fidelis de Sigmaringa, foi ele beatificado em 1729, e canonizado 17 anos depois. Tornou-se o Santo o protomártir da Sagrada Congregação da Propaganda Fidei.
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Notas
(1) A seita calvinista é das mais rigoristas entre as protestantes, baseada num orgulho enraízado, é das que mais se opõe – doutrinária e psicologicamente – à mentalidade católica. Calvino: “O mais importante iniciador do protestantismo na França, Suíça e Países Baixos” … “[sua doutrina] é entrelaçada em torno de uma interpretação particular da predestinação, de uma concepção peculiar da vida moral e social, e a uma conseqüente forma própria do culto e sistema social” (Arnaldo Lanz, Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, Casa Editrice G.C. Sansoni – Firenze, 1949, verbete CALVINO, t. 3, pp. 402 a 408.
(2) Les Petits Bollandistes, Vies des Saints, Mgr Paul Guérin, Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, Paris, 1882, t. 5, p. 8.
(3) Fr. Justo Pérez de Urbel O.S.B., Año Cristiano, Ediciones Fax, Madri, 1945, 3a. edição, tomo II, p. 194.
(4) Edelvives, El Santo de Cada Dia, Editorial Luis Vives, S.A., Saragoça, 1947, tomo II, p. 555.
(5) Abbé C. Martin, Vies des Saints à l’usage des Prédicateurs, Librairie Religieuse et Ecclésiastique, Paris, 1865, tomo II, p. 109.
(6) Edelvives, op. cit., p. 558.
(7) Congregação da Propaganda Fidei: Originariamente eram duas comissões de Cardeais fundadas por São Pio V em 1568, uma “para reconduzir à Fé os hereges da Europa Setentrional” e outra para converter os pagãos das Índias Orientais e Ocidentais. Foram elas recriadas oficialmente por Gregório XV em 1622 com a mesma finalidade (cfr. Enciclopedia Cattolica, t. 4., p. 329).
(8) Pe. Jean Croiset, Año Cristiano, Saturnino Calleja, Madri, 1901, t. 2, 285.
(9) Les Petits Bollandistes, Id., p. 10.
(10) Edelvives, op. cit., p. 560.
(11) Pe. José Leite, S.J., Santos de cada Dia, Editorial A.O., Braga, 3a. edição, 1993, tomo I, p.513.
Artigo extraído da Revista Catolicismo de Abril de 1999