A sociedade medieval apanhou perfeitamente essa ausência na locação de serviços entre empregador e empregado.
Aliás, as palavras empregador e empregado são muito boas para o mundo do metal e do dinheiro.
Por exemplo, uma cozinheira que vai trabalhar a uma casa às tantas horas, faz o almoço todos os dias, sai, e volta para fazer o jantar. Depois ela recebe o pagamento no fim do mês. E com isto estão esgotadas as relações.
O que o patrão faz fora do jantar, o que a cozinheira faz fora da hora de trabalho? Cada um ignora quase tudo a respeito do outro.
A relação é: eu sou o que come e paga, ela é a que trabalha e vive do que eu dou para ela. Fora disto os contratos humanos estão inteiramente suspensos, não existem entre empregador e empregado.
Por isso o relacionamento é realmente entre empregador e empregado, porque a única relação que há é um emprego de caráter econômico. A expressão então é justa.
Mas, na Idade Média, a palavra patrão continha muito mais. Patrão vem da palavra latina pater, ou seja, pai, com todos os ponderáveis e imponderáveis que a palavra pai traz consigo.
E a palavra criado vem da ideia de criação, quer dizer a pessoa criada dentro da casa, como uma espécie de filho ou filha, com todos os ponderáveis e imponderáveis dos relacionamentos que há entre pai, mãe e filhos.
Então o contrato entre criado e patrão medieval tomava o homem todo também.
Quando o criado entrava a trabalhar na casa do patrão era obrigado, antes de tudo, a morar na casa dele, a viver uma vida entrelaçada com a dele, contente com todos os fatos bons para o patrão, triste com todos os fatos ruins para essa forma de pai.
O casamento de um filho ou de uma filha, um filho que se formava um bom negócio que o patrão fazia, uma viagem, uma promoção, era para o criado um título de alegria, e ele participava do feliz sucesso.
Mas assim como o criado se dava completamente ao patrão, o patrão também se dava completamente ao criado.
E essa proteção atingia também aos filhos do criado, sua parentela, até mesmo quando, por alguma razão, ele deixava a casa.
Isto era algo muito semelhante, no nível doméstico ou do ofício, à vassalagem entre senhores feudais.
O vassalo pertencia ao seu senhor e a quem o senhor pertencia. Não como escravo, mas numa situação que era, de certo modo, uma prolongação da paternidade.
Por outro lado, na escala da nobreza, era a mesma coisa dos nobres inferiores em relação aos superiores e assim por diante, até chegar ao rei.
Conta-se que na noite de 10 de agosto de 1792, quando os revolucionários foram atacar o castelo das Tulherias, este castelo estava cheio de nobres acorridos dos fundos das províncias, alguns trazendo armamentos do tempo das guerras de Religião.
Por quê? Porque eles consideravam-se pertencer inteiramente ao rei, porque participavam da pessoa e da dignidade do monarca. E, portanto, se sentiam obrigados a derramar pelo rei seu próprio sangue.
Eles recebiam do rei todo o seu ser, tudo quanto eles eram. Mas de outro lado, eles davam tudo pelo rei. Era um contrato de homem a homem que toma por inteiro.
Episódios análogos se deram com os camponeses e domésticos defendendo as terras ou o castelo do patrão.
Todos estes traços característicos do relacionamento pessoal na sociedade medieval existiam na Igreja Católica. E, às vezes, tinham sido criados pela própria Igreja.
Depois do Vaticano II estabeleceu-se por via de fato, entre o bispo e seus padres uma relação mais parecida com o frio – mas legítimo – contrato entre empregador e empregado.
Porque o padre trabalha para o bispo. E o bispo é um gerente dos padres. Mas, como a palavra gerente diminui, depaupera, avilta a dignidade do bispo!
Como deforma a realidade dizer que o padre é um empregado do bispo!
Em sentido diverso, qual era o relacionamento medieval do padre com o bispo?
O padre se dá à diocese. E dando-se à diocese, ele se entrega e passa a pertencer ao bispo. E por isso, um padre diz a verdade quando diz que é padre de tal bispo.
Por outro lado, o bispo também se dá à diocese e ao seu clero.
E por causa disto, o padre tinha uma dedicação pelo bispo que chega até ao derramamento de sangue. E vice-versa.
Muito mais frisante é isto nas Ordens religiosas, onde o religioso se dá à Ordem completamente na pessoa do abade ou superior, e onde o superior se dá à Ordem completamente.
Estas relações se parecem extraordinariamente com o princípio da sociedade temporal medieval. E muitas vezes, foram os religiosos – notadamente, os beneditinos – que passaram esse relacionamento de alma à sociedade.
Não havia um contrato de trabalho meramente material, argentário ou de interesses.
O contrato de trabalho é necessário, mas é apenas um dos elementos integrantes de toda uma situação humana de relações afetivas, de contatos morais, de gostos comuns, que se estabelecem na vida real sempre que dois ou mais se relacionam.
Dessa maneira, temos uma noção muito mais verdadeira, aconchegante, simpática e protetora do que era a civilização medieval.