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Reforma Agrária: o mito e a realidade

Resumo do livro do jornalista Nelson Ramos Barretto, demonstrando o fracasso da reforma agrária no Brasil.

O governo Fernando Henrique Cardoso anunciou ter feito a maior Reforma Agrária do mundo. Entretanto, os assentamentos não passam de favelas ruraisimprodutivas, conforme já acentuávamos em nossa primeira reportagem, publicada em 1995.

Seria, pois, um imperativo da razão e do bom senso que, antes de prosseguir com essas desapropriações e assentamentos, se fizessem estudos pormenorizados sobre o aproveitamento até agora dado às propriedades que já passaram das mãos do INCRA aos assentados. Um relatório circunstanciado precisaria ser elaborado e discutido com os setores representativos, tanto patronais quanto de trabalhadores, e promovido um debate nacional que esclareça esse mistério das terras desapropriadas.

Infelizmente não é o que vemos. Há um açodamento em prosseguir no rumo agro-reformista, inspirado pelo socialismo agrário mais debandado, radicado na CPT e no MST.

Uma vez que tal iniciativa não parte dos órgãos oficiais que deveriam tomá-la, conforta-nos vê-la empreendida por um jornalista sério e competente, que se empenhou numa verdadeira maratona, de norte a sul do País, a fim de averiguar a situação dos assentamentos, muitos dos quais apresentados como “modelo” pelo governo. Disso resultou o livroReforma Agrária: o mito e a realidade, em que Nelson Ramos Barretto contesta a sorridente versão oficial. Apresentamos a seguir um resumo dessa obra esclarecedora.

Assentamento-modelo… só se for de fracasso

Da instalação do assentamento à sua implantação, o INCRA prevê 18 meses de duração. Neste período, os assentados recebem créditos referentes à alimentação, fomento agropecuário e habitação.

A realidade irá nos mostrar que não há praticamente nenhum assentamento emancipado até hoje, e os assentados não passam de funcionários públicos de uma imensa estatal latifundiária e improdutiva chamada INCRA!

O Projeto de Assentamento (PA) São Pedro, Guaíba-RS, foi apontado por um relatório da FAO, de 1991, com renda igual a 12 salários mínimos mensais para cada assentado. Todos os assentados entrevistados contestaram. A irmã Teresa Schiavenato, religiosa da Congregação das Filhas do Sagrado Coração de Jesus, que vive com mais duas freiras no assentamento, respondeu: “Isso deve ter sido erro de imprensa, ou alguém que aumentou, pois eu me lembro bem que eles só fizeram uma entrevista com um cara da cooperativa aqui embaixo, e ele não falou isso”.

O PA Fazendas Reunidas, Promissão-SP, era um assentamento-modelo. Ali entrevistamos João Francisco de Carvalho, no local desde 1987, líder do assentamento e presidente da Cooperativa de Produção Agropecuária Padre Josimo Tavares. Ele não aceita a qualificação de modelo, e responde: “Modelo?! Se este assentamento for modelo, eu tenho dó dos outros! Isso é demagogia! Aqui não se tira nem um salário mínimo por mês!”.

Em outro assentamento-modelo a resposta foi a mesma. Aparecido Baldán chegou à fazenda Barreiro, Limeira do Oeste-MG, como invasor e líder dos sem-terra. Hoje é vice-presidente da Câmara Municipal. Ele é enfático: “Essa história de três, quatro, cinco salários mínimos, isso não existe. Temos uma economia de subsistência”.

Quase a totalidade dos entrevistados garante não estar em dia com seus compromissos com os bancos. Trajano Oliveira, do já citado PA São Pedro, informa: “Na verdade, a gente não paga o PROCERA. Nem eu pago e nem ninguém aqui. Vão completar 10 anos que a terra foi desapropriada e todo ano sai o PROCERA”.

Evasão dos assentamentos e fraude

São altos os índices de evasão dos assentamentos. O assentado vende ou arrenda o lote, mas continua lá como ‘caseiro’ para enganar a fiscalização. Em Iturama-MG, o secretário da associação dos assentados, Oquildo Severo da Silva, narra suas dificuldades: “Das 80 famílias iniciais restam ainda 23. Mesmo dos posseiros que já se encontravam há mais tempo aqui, uns tantos já venderam, pois ir para frente aqui, não temos condições”.

A Reforma Agrária é feita em nome do social. Ora, passamos por Carazinho-RS, onde conversamos com o jornalista Jairo Martins, do jornal local “O Noticioso” e correspondente do “Correio do Povo” de Porto Alegre. Ele foi taxativo: “Fiz umas 10 matérias sobre aquele assentamento da Annoni. O que fizeram lá é uma verdadeira insensatez. Aquilo é considerado a maior favela rural da América Latina”.

Fac-símile da entrevista de Nelson Barretto ao “Diário”, de Campos (RJ)

Inviabilidade de fixação do homem nos assentamentos

Os assentados denunciam que dentro do assentamento “os maiores engolem os menores”.Gonçalo Homero Batista, da Annoni, afirma que os diretores das associações “trabalham com mão de gato. Sou sócio da cooperativa deles e os conheço muito bem. Caem 5 mil reais lá para a cooperativa, e aqui chega só o restinho”. Gonçalo cortava capim com uma foicinha, para as suas duas cabeças de gado. Foi a única foice vista por nós nos 44 assentamentos visitados. A foice, símbolo do MST, parece ser apenas usada em manifestações, como propaganda.

Apesar de termos visto cartazes com o jargão A terra vos libertará!, a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rosana e assentada na Gleba XV, Pontal do Paranapanema-SP, Raquel Malanzuch, expõe a situação de ‘prisioneiros’ em que se encontram os assentados: “O desejo deles é de ser libertados, fazer um financiamento, sentirem-se responsáveis pelo que fazem. Precisamos do título dessas terras”.

Não concedendo título de propriedade aos assentados, o Estado vai criando um caos jurídico fundiário, na medida em que os concessionários “vendem” os lotes. Os assentados demonstram preocupação pela falta de documentação. Gerson Ferraz de Souza, do PANova Piratininga, GO, conta: “Não tenho nenhum papelzinho”. Luís José de Sena, de Pajeú, BA, reclama: “Título da terra também nós não temos”.

Na Bahia, o assentado Maurício Alves de Miranda, Secretário da Agricultura do município de Ponto Novo, fala revoltado contra o regime de escravidão: “Você vive submisso às regras da Reforma Agrária! Estou há 10 anos num assentamento, não tenho um título, não tenho um documento que eu possa ir a um banco tentar desenvolver um projeto individual. Eu vivo em regime de escravidão diante do governo federal.”

Apesar de todos os investimentos estatais, com o dinheiro do contribuinte, os assentamentos são insustentáveis. Os jovens vão para a cidade e os velhos aposentados permanecem. Assim, nem mesmo a fixação do homem no campo está garantida para as novas gerações. Para Antonio Batista Bustos, de Promissão-SP, “cada lote desses da Reforma Agrária é suficiente apenas para o marido, mulher e os filhos pequenos. Na medida em que eles crescerem, têm de partir para outro pedaço de terra”.

No PA São Pedro-RS, considerado pela publicação da FAO como sendo de renda superior, Trajano Oliveira expressa seu desânimo: “Eu nunca ouvi dizer que alguém daqui tenha melhorado de situação. Para mim isso piorou.”

Nova pesquisa: aprofundamento do fracasso

Nossa segunda pesquisa, que figura na Parte III — Balanço da Reforma Agrária no governo Fernando Henrique — do mencionado livro, feita nos meses de novembro/dezembro de 2002, ao longo de 8.000 km, mostra o continuado insucesso da Reforma Agrária.

Criado em 1994, o PA Nova Santo Inácio, em Campo Florido-MG, abriga 115 famílias numa área de 3.583 ha e ainda se encontra na fase 3 (sobre 7) da classificação do INCRA, ou seja, assentamento criado. 80% dos assentados arrendam suas terras a produtores de soja ou cana-de-açúcar.

Em Lagoa Grande-MG, o PA Barreirão, de 791 ha, com 27 famílias, criado em 1996, encontra-se na fase de consolidação e é apontado como“exemplo de assentamento bem-sucedido”, numa publicação do INCRA de 1999. Tal publicação, aliás, apresenta uma curiosidade digna de nota. Na capa, em alto relevo, aparecem perfilados 12 trabalhadores com enxadas na mão, em pose de quem se encontra carpindo. Metade dostrabalhadores está segurando a enxada de maneira errada. Parece que não sabem usá-la!

Numa página interna, lemos: “Dois assentamentos, criados em 1996, estão fornecendo 999 mil quilos de maracujá para a Maguari, um dos maiores produtores de sucos do Brasil”. Mas no PA do Barreirão, fomos informados de que a plantação de maracujá durou apenas um plantio. Segundo o assentado Lázaro Luís de Melo, todos sofreram um enorme prejuízo.

No assentamento: impossibilidade de progredir

Em situação semelhante encontra-se o assentamento Fruta D’Anta, João Pinheiro-MG, com 231 famílias, 20.000 ha, criado em 1986. Apesar de ser um dos mais antigos pela classificação do INCRA, encontra-se ainda na“fase 3”, isto é, assentamento criado. Existem lotes negociados até quatro vezes, que já se encontram em mãos do quinto assentado. José Wilson, pequeno proprietário em Olhos d´Água, local vizinho ao assentamento, conta-nos: “Aí dentro tem funcionário público, funcionário de banco, dono de loja de bicicleta, mecânico. Tem de tudo aí”.

Na sede do assentamento existe uma lanchonete. Sua proprietária, Maria Moreira da Mota Rodrigues, observa: “É modelo para quem não conhece a realidade”. Confessa enfrentar pressão no sentido de fechar a lanchonete, e pergunta: “Por que serei obrigada a ficar no lote, sem ter nenhuma perspectiva de melhora?”.

Gerson Pinto Cardoso disse-nos ter comprado seu lote há seis anos, pagando R$ 14.000 por ele. Mas, pelo fato de possuir uma oficina de lanternagem na cidade, encontra-se ameaçado de despejo pelo INCRA. Segundo Gerson, “aqui, todos estão condenados a ficar como entraram, sem nada, pois ninguém pode melhorar de vida. Com a oficina, posso fazer mais em meu lote do que aqueles que não têm nenhum recurso para investir. Mas ninguém aqui pode crescer”.

Uma vez que todo o mato da área já virou carvão, só resta aos assentados explorarem a pecuária de leite. Com efeito, eles estão tirando (período das chuvas) cerca de 8 mil litros de leite/dia. A cooperativa começou em 1998 e chegaram a 137 fornecedores de leite. Mas os pastos não estão sendo cuidados, e por falta de pastagens alguns assentados chegaram a perder até 20 cabeças de gado na seca.

Um problema presente em todos assentamentos da Reforma Agrária é o futuro das crianças. Celso Soares, presidente da associação dos assentados, disse que a escola tem cerca de 400 alunos, mas pelo tamanho da área os filhos dos assentados não poderão ficar lá, por falta de recursos. Segundo Celso, “se não arranjarmos meios de eles ficarem, em breve teremos aqui uma colônia de velhos com bengalas nas mãos”,e ali na entrada uma placa: “Asilo de Velhos Fruta D’Anta”.

“Produtos” do assentamento: Mr. Ginger e bóias…

O site do INCRA, em 12-6-02, apresenta como um sucesso o assentamento Nhundiaquara, Morretes-PR, com 92 famílias, 1.542 ha, criado em 1984. Nele se planta gengibre orgânico, que é exportado para os Estados Unidos, Reino Unido, China e Japão. O assentado Teiva Vieira, classificado como empreendedor nato, estaria comercializando 70 toneladas de gengibre por ano e ganhando R$ 40 mil por ano, ou seja, R$ 2,5 mil por mês. Aparecem várias fotos, entre as quais uma embalagem de gengibre com o rótulo: Mr. Ginger – produce of Brazil.

A idéia mítica do Mr. Ginger (ginger significa gengibre, em inglês) foi quebrada já na primeira abordagem feita a dois funcionários da prefeitura que se encontravam no assentamento: “Aquilo não deu certo e acabou a plantação”. A realidade continuava desmentindo o mito.

Tisnado pelo sol, mãos calejadas, Donizete Ruela de Oliveira conta que plantou gengibre durante cinco anos, mas a partir de 96 começou a perder tudo e ainda ficou devendo cerca de R$ 70.000. Deixou claro que não apóia o MST, o qual enviou militantes para convidar os assentados a entrar no movimento. Mas, como ninguém deu atenção, acabaram indo embora. Para Donizete, o MST só quer fazer confusão; e se quisesse terra, o José Rainha — chefe deles — estaria trabalhando no pedaço que ganhou.

O site do INCRA fala de uma nova “agricultura” do assentamento: o aluguel de bóias. Fomos conversar com o presidente da associação dos assentados, Orlei Porcides. Ele foi logo dizendo: “O gengibre me levou para o buraco. Foi só ilusão. A razão do fracasso foi o custo de produção”.Orlei julga ser ele o assentado que menos deve. Sua dívida é de cerca de R$ 70 mil. Há quem deva até R$ 300 mil lá no assentamento. Como seu lote encontra-se à beira da estrada da Graciosa e bem junto à cidade, foi morar num barracão e transformou a casa em hospedaria. Além disso, aluga bóias para turistas se banharem no rio Nhundiaquara, que passa ao lado da casa.

Em 1989: tapete verde; em 2002: terra devastada

O PA Pirituba II — Área 1, Itapeva-SP, de 2.511 ha, 101 assentados, foi criado em 1984 e encontra-se ainda na fase 4 sobre 7. O falecido governador Franco Montoro, ao inaugurá-lo, afirmou que ali iria “chover dinheiro”. Mais tarde o governador Orestes Quércia colocou feijão do assentamento à venda, junto às estações do metrô de São Paulo, como sendo o “feijão da Reforma Agrária”. A Rede Globo filmou as plantações de feijão dos holandeses que confinavam com o assentamento, e colocou no ar como sendo “a plantação de feijão da Reforma Agrária”!

Em 1989, quando visitamos pela primeira vez a região, impressionou-nos o contraste entre a plantação dos holandeses e a situação de seus vizinhos assentados. De um lado, um tapete verde. De outro, uma terra devastada. Em dezembro de 2002, depois de as terras dos holandeses terem sido invadidas e transformarem-se em assentamento, o tapete verde foi também devastado.

Um técnico graduado da região, que nos pediu discrição, afirmou que das 94 famílias que receberam lotes no assentamento da Área I restam apenas umas quatro. Cerca de 90 já foram embora ou arrendam suas terras.

Os recursos da Reforma Agrária são utilizados sem racionalidade ou fiscalização. Um ex-funcionário do Banespa confessou que técnicos e fiscais do banco davam pareceres contrários a financiamentos aos assentados por falta de viabilidade técnica, mas o presidente do banco despachava: “Libera-se a verba apesar de parecer contrário”. Mais tarde, quando os mesmos técnicos iam fiscalizar a aplicação da verba, o presidente instruía: “Liberam-se novas fases do financiamento e cancele-se a fiscalização”.

Qualificação do MST: “Aquilo é uma máfia”

Dentro da Área I existem duas facções de assentados. Uma dirigida por Delveck Mateus, líder do MST, que é o presidente da Cooprocol — Cooperativa que reúne os partidários da plantação coletiva, e outra é a Cooperativa 13 de Maio, dirigida por Iolando Batista Veiga. Ambas, na verdade, só existem no papel.

Delveck Mateus foi procurado por nós, mas encontrava-se viajando, como sempre, segundo fomos informados. Iolando conta por que saiu do MST:“Aquilo é uma máfia”. Iolando disse que não pagava pedágio cobrado pelo MST e ainda aconselhava os colegas a não pagar. “O que o assentado quer é trabalhar, cuidar de sua família, e o MST quer que a gente saia do assentamento para fazer invasão. […] Tinha até um professor do MST para ensinar invasão. Muitos lotes vagos no assentamento estavam reservados para os filhos dos dirigentes do MST”.

Apesar do fracasso, a insistência inexplicável

Alguém que tivesse visitado os assentamentos no início do governo Fernando Henrique, em 1995, e depois no final de seu mandato, em 2002, poderia ter a impressão de que a situação melhorou: barracos foram substituídos por casas de alvenaria, assentados têm vacas que garantem o leitinho das crianças.

Mas, ao aprofundar sua análise, verificará que as causas do fracasso da Reforma Agrária permanecem. Não se conseguiu a viabilidade econômica desses assentamentos. Por isso os assentamentos antigos, de quase 20 anos, ainda não foram emancipados.

Se o governo conseguiu melhorar a aparência dos assentamentos, foi à custa de exorbitante investimento, calculado em 25 bilhões de reais. Com este montante poder-se-ia atender a um maior número de necessitados, com resultados mais eficazes.

Diante dessa fracassada experiência, revela-se um contra-senso o atual presidente querer aprofundar a Reforma Agrária, pois ela não está beneficiando ninguém e está prejudicando a todos. Ela nada resolve e tem lançado o campo num verdadeiro caos.

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E-mail do autor: phchaves@nutecnet.com.br

 

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