Na divisão um tanto sumária que muitas vezes se fez da sociedade medieval, só há lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania, o arbítrio e os abusos de poder; do outro os miseráveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito exigidos.
Tal é a ideia que evocam — e não apenas nos manuais de história para uso das escolas primárias — as palavras nobreza e terceiro estado.
O simples bom senso basta, no entanto, para dificilmente admitir que os descendentes dos terríveis gauleses, dos soldados romanos, dos guerreiros da Germânia e dos fogosos escandinavos se tenham reduzido, durante séculos, a uma vida de animais encurralados.
Mas há lendas tenazes. O desdém pelos “séculos obscuros” data, aliás, de antes de Boileau.
Na realidade, o terceiro estado comporta uma série de condições intermediárias entre a liberdade absoluta e a servidão.
Nada de mais diverso e mais desconcertante do que a sociedade medieval e as propriedades rurais da época.
A sua origem absolutamente empírica dá conta dessa prodigiosa variedade na condição das pessoas e dos bens.
Para dar um exemplo, o parcelamento do domínio representa na Idade Média a concepção geral do direito de propriedade, no entanto existe aquilo que o nosso tempo já não conhece: a terra possuída em livre propriedade — o alódio (alleu) ou alódio livre (franc-alleu) — isenta de todos os direitos e imposições de qualquer espécie.
Isto manteve-se até a Revolução Francesa, quando quaisquer terras declaradas livres, ou seja, os alódios, deixaram de fato de existir, já que tudo foi submetido ao controle e às imposições do Estado.
Notemos ainda que na Idade Média, quando um camponês se instala numa terra e nela exerce o seu trabalho durante o tempo da prescrição (isto é, o tempo de duração do ciclo completo dos trabalhos dos campos, desde a lavragem até a colheita), durante um ano e um dia ele é considerado o único proprietário dessa terra, sem ser perturbado.
(Em Portugal, este tipo de camponeses livres chamavam-se herdadores e enfiteutas).
Isto dá ideia do grande número de modalidades que podemos encontrar.
Hóspedes, colonos, lites, servos, são termos que designam condições pessoais diferentes.
E a condição das terras apresenta uma variedade ainda maior: censo, renda, champart, fazenda, propriedade en bordelage, en marché, en queuaise, à complan, en collonge.
Conforme as épocas e as regiões, encontramos uma infinidade de acepções diferentes na posse da terra, com um único ponto comum: salvo o caso especial do alódio livre, há sempre vários proprietários com direito sobre um mesmo domínio.
Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todas as variedades de terrenos, de climas e de tradições – o que afinal é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo pobre as obrigações que podem ser impostas, por exemplo, aos camponeses da Beócia ou da Touraine.
O povo tinha propriedade? Sim, e numa abundância e diversidade estonteante
De fato, eruditos e historiadores tentam ainda analisar uma das matérias mais complexas que foi oferecida à sua sagacidade: há abundância e diversidade de costumes.
E há em cada uma delas uma infinidade de diferentes condições, desde a do arroteador, que se instala numa terra nova, e ao qual se pedirá apenas uma pequena parte das colheitas, até o cultivador estabelecido numa terra em plena produção e sujeito aos censos e rendas anuais.
Há também os erros sempre possíveis, provenientes das confusões de termos, já que estes cobrem por vezes realidades completamente diferentes conforme as regiões e as épocas; há finalmente o fato de a sociedade medieval estar em perpétua evolução, e aquilo que é verdade no século XII já não o é no século XIV.
O que se pode todavia saber com segurança é que houve na Idade Média, além da nobreza, um conjunto de homens livres que prestavam aos seus senhores um juramento mais ou menos semelhante ao dos vassalos nobres; e um conjunto não menor de indivíduos de condição um pouco imprecisa entre a liberdade e a servidão.
O jurista Beaumanoir distingue nitidamente três estados:
“Nem todos os francos são nobres, porque chamam-se nobres aqueles que provêm de linhagens francas, como o rei, duques, condes ou cavaleiros, e esta nobreza é sempre transmitida pelos pais.
Mas não acontece o mesmo para o homem livre (poosté), porque o que eles têm de franquia lhes vem pelas mães, e qualquer pessoa que nasça de mãe franca é também franca, e tem livre poosté, para fazer o que quiser.
E o terceiro estado é o de servo. Este conjunto de gente não é toda de uma condição, existem várias condições de servidão”. Vemos que não faltam distinções a estabelecer.
Os habitantes das cidades medievais eram livres?
Sim, igual que grande número de camponeses
Livres são todos os habitantes das cidades, e sabemos que estas se multiplicam a partir do começo do século XII.
O grande número delas que ainda hoje têm o nome de Villefranche, Villeneuve, Bastide, etc., são para nós uma recordação dessas cartas de povoamento pelas quais eram declarados livres todos aqueles que acabavam de se estabelecer numa dessas cidades recentemente criadas, como eram os burgueses e artesãos nas comunas, e em geral em todas as cidades do reino.
Além disso, um grande número de camponeses é livre, nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilãos (os termos tomaram o sentido pejorativo muito depois).
O plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura designa a ação de romper a terra com a relha da charrua. O vilão é de modo geral aquele que habita um domínio, ou villa.
Depois vêm os servos.
A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu a servidão própria da Idade Média com a escravatura, que foi a base das sociedades antigas, e da qual não se encontra qualquer rastro na sociedade medieval.
Como refere Loisel:
“Todas as pessoas são livres neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento, fazendo-se batizar, é franqueado”.
Por força das circunstâncias a Idade Média teve de buscar o seu vocabulário na língua latina, e seria tentador concluir da semelhança dos termos a semelhança do sentido.
Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono, que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal lhe é recusada; não conhece nem família, nem casamento, nem propriedade.
O servo medieval, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal.
Possui uma família, uma casa, um campo, e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos.
Está ligado a um domínio, mas não submetido a um patrão. Não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real.
A restrição imposta à liberdade do servo é que ele não pode abandonar a terra que cultiva.
Mas é conveniente notar que essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tomá-la dele.
Esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio.
De fato, o termo encontra-se numa coleta de costumes, o Brakton, que diz expressamente quando fala dos servos:
“Tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt“ (gozam desse privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra).
Isto corresponde mais ou menos àquilo que seria, nos nossos dias, uma garantia contra o desemprego.
O rendeiro livre está submetido a toda espécie de responsabilidades civis, que tornam a sua sorte mais ou menos precária: endividando-se, podem confiscar-lhe a terra.
Em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível.
Quanto ao servo, está ao abrigo das vicissitudes da sorte: a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela.
Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)