Resposta do Sr. Monsenhor José Luiz Villac sobre as relações entre a Fé e a Razão.
Pergunta dirigida ao Monsenhor José Luiz Villac:
Pergunta — A recente (e já provada falsa) descoberta de uma urna funerária com a inscrição “Tiago filho de José irmão de Jesus”suscitou, além de problemas de exegese bíblica, polêmicas sobre as relações entre ciência, razão e fé. Assim, um jornal de grande circulação comentou: “O discurso religioso e o científico não combinam”. E concluía seu editorial com as palavras: “No fundo, tinha razão Tertuliano (155-220) quando afirmou: `Credo quia absurdum’(creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé é o milagre, isto é, o que contraria as leis da natureza e a ciência” (“Folha de S. Paulo”, 3-11-02). Sempre ouvi dizer que as verdades da fé não contrariam a razão nem a ciência. Como entender a frase de Tertuliano citada pelo jornal?
Resposta — Tertuliano foi certamente um dos maiores gênios que o cristianismo produziu. Dada a imensa estatura de Santo Agostinho, a se admitir a comparação entre ambos, pode-se calcular a estatura de Tertuliano. Dele é o célebre “Christus cogitabatur”, que é como ele concebe o pensamento divino ao formar o corpo do primeiro homem. Isto é, ao moldar o corpo de Adão, Deus “cogitava em Cristo”, a saber, tinha em vista que estava modelando o corpo da espécie na qual o Verbo divino encarnaria! Ter altitude de espírito para imaginar o que Deus estaria pensando nesse momento decisivo da história humana (se bem que em Deus tudo se passa no âmbito da eternidade) é a marca de um gênio. Esse foi Tertuliano.
Mentalidade destemperada
A ele se deve também ter penetrado pela primeira vez, de modo mais profundo, no mistério da Santíssima Trindade, com explicitações tais que permitiram a Santo Agostinho, e mais tarde a Santo Tomás, darem uma forma praticamente acabada e perfeita à formulação do dogma. Isto bastaria para consagrar um homem de talento extraordinário, se a Tertuliano não se devessem igualmente outros progressos teológicos de grande mérito, para não falar de seu valor como um dos maiores polemistas e apologetas do cristianismo.
Isto tudo não obstante, ele próprio enveredou, no entardecer de sua vida, pela heresia do montanismo, a qual por sua vez abandonou. Morreu fora da Igreja, com um pequeno grupo de partidários tertulianistas. Um dos fatores que contribuíram para esse final infeliz foi certamente o mau uso de seu gênio extremado até o excesso; e suas concessões ao orgulho, que o levaram a afirmações destemperadas e até de mau gosto.
Exemplo de uma mentalidade e de um modo de ser que depois explicam muitos desvios havidos.
As fábulas dos filósofos
Os primeiros apologistas do cristianismo tiveram que se defrontar com a filosofia dos pagãos, que os argüiam com os seus princípios errôneos para impugnar as verdades da Fé. Tertuliano arremetia sobre eles com paus e pedras: “Miserável Aristóteles! Foi ele quem lhes ensinou [aos pagãos] a dialética, arte de construir e de demolir, mutável nas opiniões, forçada nas conjecturas, obtusa nas argumentações […]. Estejam atentos aqueles que puseram em circulação um cristianismo estóico, platônico ou dialético! Não devemos ser movidos pela curiosidade, depois que veio Jesus Cristo, nem pelo desejo de novas investigações, depois que temos o Evangelho. A partir do momento em que cremos, não desejemos senão crer. Este é, de fato, o primeiro artigo de nosso credo: [fora de Jesus Cristo] nada há mais que devamos crer” (De praescriptione 7,12). Tampouco poupa a Platão, que qualifica como “omnium haereticorum condimentarium” (o provedor de todos os hereges — De anima 23,5).
Pois bem: esta áspera e destemperada denúncia da filosofia pagã e uma tão enérgica afirmação da completa autonomia da fé — aliás justa — não nos autoriza a concluir, como freqüentemente se faz, que a posição de Tertuliano possa ser devidamente representada pelo famoso credo quia absurdum como autêntico sustentáculo de sua fé. Em primeiro lugar porque ele nunca escreveu essa frase. Não obstante, alegam-se frases paralelas: “credibile quia ineptum est” (é crível precisamente porque é inepto — De carne Christi 5); ou “certum est quia impossibile” (é certo precisamente porque é impossível). Mas estas frases, emitidas por um autor que tinha o gosto da contundência, a rigor apenas enunciam a absoluta superioridade da fé em relação à razão. Isto é, posto que o objeto supremo da fé é Deus — que, por ser infinito, não pode ser abarcado (teologicamente se diz “compreendido”) pela razão humana —, o homem tem que ter a humildade de reconhecer que a capacidade de sua mente tem um limite além do qual está precisamente o limiar do terreno da fé. As frases autênticas de Tertuliano levam a essa conclusão profunda.
Conformidade entre fé e razão
O fato é que, pela sua atuação como polemista, Tertuliano mostrou que assim pensava. Ao formular as verdades da fé cristã, ele freqüentemente tira elementos da filosofia estóica; e ao atacar a filosofia pagã, apela constantemente para a filosofia do senso comum. Em famosíssima passagem do seu livro Apologeticum, faz apelo a uma outra filosofia, que é a filosofia inata da consciência comum e do testemunho da alma, ou seja, aquela filosofia que conclui ser a alma “naturalmente cristã”:“Testimonium animae naturaliter christianae” (Apologeticum 17).
Por isso conclui o teólogo dominicano Battista Mondin: “Delineia-se neste ponto um modo de impostar as relações entre fé e razão, entre filosofia e cristianismo, que está muito longe do que será formulado na história da filosofia cristã: para Tertuliano, contrariamente ao que se costuma dizer, entre estas duas formas do saber e da cultura nunca houve nem pode haver, em linha de princípio, uma clara antítese, porque, na sua forma originária de filosofia do senso comum, entre fé e razão, entre filosofia e cristianismo existe mais bem uma inata, conatural convergência e sintonia“ (Storia della Teologia, Edizioni Studio Domenicano, Bolonha, vol. 1, 1996, p. 155).
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P.S. — Os leitores interessados na questão exegética do parentesco de Jesus com o apóstolo São Tiago, o Menor, podem ver A palavra do Sacerdote de julho de 2001 (Catolicismo, no 607).