Carta Encíclica Mortalium Animus de Pio XI

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Sobre o verdadeiro sentido do ecumenismo.

 

Documentos de S.S. Pio XI – Encíclicas, Moto Próprios, Notas, Alocuções, Documentos dos Dicastérios, etc…, Texto latino com tradução francesa, Tomo IV, (anos 1927-1928), Maison de la Bonne Presse, Paris, 1932, (páginas 63-82).

 

CARTA ENCÍCLICA

MORTALIUM ANIMUS

 

Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e Outros Ordinários Locais, em paz e comunhão com a Sé Apostólica

 

Sobre os meios de realizar a verdadeira unidade da religião

 

PIO XI, PAPA

 

VENERÁVEIS IRMÃOS, SAUDAÇÃO E BENÇÃO APOSTÓLICA

Talvez as almas nunca tenham sentido uma tal necessidade desta fraternidade que, devido à comunidade de origem e à identidade de natureza, nos une tão estreitamente uns aos outros; nunca tanto como em nossos dias se viu nelas o esforço de afirmá-la, para a colocar ao serviço do bem público e da sociedade.

De fato, as nações não gozam ainda plenamente os frutos da paz; fermentos antigos ou novos de discórdia causam aqui e lá revoluções ou lutas internas; entretanto, os numerosos litígios que põem em jogo a paz e a prosperidade dos povos não encontrarão solução senão pela união e a ação concordante daqueles que, no governo dos Estados, estejam encarregados de dirigir a política e favorecer o progresso.

Eis porque – ninguém pensando mais em contestar a unidade do gênero humano – compreende-se facilmente que, levado por este sentimento de fraternidade universal, a maioria do gênero humano suspira pela união cada vez mais íntima de todos os povos.

É algo semelhante que alguns se esforçam para introduzir na ordem estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo para a Nova Lei. Sabendo perfeitamente que é extremamente raro encontrar homens absolutamente desprovidos de senso religioso, eles nutrem a esperança de que se poderia facilmente conduzir os povos, apesar de suas dissidências religiosas, a se unirem na pro­fissão de certas doutrinas admitidas como um fundamento comum de vida espiritual.

Em conseqüência, eles têm congressos, reuniões, conferências freqüentadas por­  um número bem considerável de auditores; convidam para as discussões todos os homens indistintamente, os infiéis de toda categoria, os fiéis, e até aqueles que têm a infelicidade de serem separados de Cristo, ou que negam asperamente e obstinadamente a divindade de sua natureza e de sua missão.

Esforços semelhantes não têm qualquer direito à aprovação dos católicos, pois se baseiam nessa opinião errada de que todas as religiões são mais ou menos boas e louváveis, neste sentido de que elas revelam e traduzem todas igualmente – embora de uma maneira diferente – o sentimento natural e inato que nos leva a Deus e nos inclina com respeito diante de seu poder.

Além de se perderem em pleno erro, os participantes dessa opinião repelem com o mesmo golpe a religião verdadeira; eles falsificam sua noção e se dirigem pouco a pouco para o naturalismo e o ateísmo. É perfeitamente evidente que se trata de abandonar inteiramente a religião divinamente revelada e se unir aos partidários e propagandistas de tais doutrinas.

Uma falsa aparência do bem pode mais facilmente, quando se trata de favorecer a união de todos os cristãos, arrastar algumas almas. Não é justo – tem-se o hábito de dizer – não é mesmo um dever para todos aqueles que invoquem o nome de Cristo de evitar as acusações recíprocas e de se unir enfim, periodicamente, pelos laços de uma mútua caridade? Ousaria alguém afirmar que ama Cristo, se não procura com todas suas forcas realizar o voto de Cristo, ele mesmo pedindo a seu Pai que seus discípulos fossem um (João XVII,21)?

E Cristo não desejou ainda que seus discípulos fossem marcados e assim distintos do resto dos homens pelo sinal do amor mútuo: “É assim que to­dos reconhecerão que sois meus discípulos se amais uns aos outros (João, XIII, 35)”. Agrade a Deus – acrescentemos – que todos os cristãos sejam “um”; pois, deste modo, eles rejeitariam com uma eficácia muito maior este veneno da impiedade que, se insinuando e difundindo cada dia mais, prepara a ruína do Evangelho.

Tais são, entre outras do mesmo gênero, as razões que fazem valer os pancristãos, como são chamados. Não é, além do mais, que tais homens sejam poucos e raros; ao contrário, eles formaram organizações completas e fundaram por todos os lugares associações que dirigem quase sempre acatólicos, malgrado suas divergências pessoais em matéria de verdades de fé.

O empreendimento prossegue além disso tão ativamente que adquiriu o favor de múltiplos meios, captando mesmo a benevolência de numerosos católicos, atraídos pela esperança de realizar uma união conforme, parece, aos votos de nossa Mãe a santa Igreja, a qual, em todos os tempos, nada desejou tanto como chamar e reconduzir a si os filhos extraviados. Porém, pela sedução do pensamento e pela carícia de palavras se introduz um erro incontestavelmente dos mais graves e capazes de arruinar de alto a baixo os fundamentos da fé católica.

A consciência de nossa responsabilidade apostólica nos impede permitir que erros perniciosos venham se espalhar pelo rebanho do Senhor. Assim também, Veneráveis Irmãos, apelamos ao vosso zelo para evitar um tamanho mal. Com efeito, estamos persuadidos de que, por vossos escritos e por vossa palavra, cada um poderá facilmente fazer com que seus fiéis entendam e compreendam os princípios e as razões que vamos expor; os católicos daí aproveitarão uma regra de pensamento e de conduta para as obras visando reunir novamente, do modo que for, em um só corpo, todos aqueles que tomam para si o nome de cristãos.

Deus, Autor de todas as coisas, nos criou para O conhecer e O servir; princípio de nossa existência, ele tem um direito absoluto de nos ve-Lo servir. Deus teria podido impor ao homem, como regra, apenas a lei natural que ha­via gravado no coração ao criá-lo, e em seguida regular os desenvolvimentos por sua Providência ordinária; entretanto, ele julgou preferível de acrescentar preceitos a serem observados, e, ao longo das idades, isto é desde a origem do mundo até a vinda da pregação de Jesus Cristo, ele mesmo instruiu os homens sobre os deveres que se impunham a todos os seres racionais em relação ao seu Criador: “Após ter, por muitas vezes e em diversos assuntos, fala­do outrora a nossos pais pelos Profetas, Deus, nos tempos mais recentes, nos falou pelo Filho.” (Heb. I, 1 seq.)

Disso resulta que não existe verdadeira religião fora daquela que repousa sobre a Revelação divina; esta Revelação, iniciada na origem do mundo, prosseguida sob a Lei antiga, o próprio Jesus Cristo a rematou na Lei nova. Mas, desde que Deus falou – o que atesta a história -, é evidente que o homem tem a obrigação absoluta de crer em Deus quando ele fala e de lhe obedecer integralmente quando ele comanda. A fim de que justamente nós trabalhássemos, ao mesmo tempo, pela glória de Deus e pela nossa própria salvação, o Filho único de Deus constituiu sobre a terra sua Igreja. Ora, aqueles que se dizem cristãos não podem deixar de acreditar, pensamos Nós, que uma Igreja única foi fundada por Cristo; mas se Nós lhe perguntamos em seguida qual ela deva ser, segundo a vontade de seu Fundador, esta Igreja, eles não se entendem mais. Muitos dentre eles, por exemplo, negam que a Igreja de Cristo deva ser uma sociedade visível, apresentando-se sob a forma de um corpo único de fiéis, e fazendo todos profissão de uma só e mesma dou­­tri­na sob um magistério e um governo únicos; ao contrário, a Igreja visível não é outra coisa, no sentido deles, senão uma federação de diferentes comunidades cristãs, apegadas a doutrinas diferentes, algumas vezes mesmo contraditórias.

Nosso Senhor Jesus Cristo, entretanto, instituiu sua Igreja como uma sociedade perfeita, tendo por sua própria natureza caracteres exteriores e per­ceptíveis aos nossos sentidos, tendo por meta procurar no futuro a sal­va­ção do gênero humano, sob a direção de um único chefe (Mat. XVI, 18seq; Luc. XXII, 32; João XXI, 15-17), pelo ensinamento e pela pregação (Marc. XVI, 15), pela administração dos sacramentos, fontes da graça celeste (João III, 5; VI,48-49; XX, 22 seq.; cf. Mat. XVIII, 18; etc.); é por isso que ele a comparou a um reino (Mat. XIII), a uma casa (Cf. Mat. XVI, 18), a um apris­co (João X, 16), a um rebanho (João, XXI, 15-17). Após a morte de seu Fun­dador e dos primeiros Apóstolos encarregados de a propagar, esta Igreja tão admiravelmente constituída não podia seguramente nem perecer nem desa­parecer, pois ela havia recebido o mandato de conduzir, sem distinção do tem­po e do lugar, todos os homens à salvação eterna: “Ide pois e ensinai em todas as nações” (Mat. XXIII, 19). No cumprimento perpétuo desta missão, po­deria a Igreja desanimar ou malograr, enquanto o próprio Cristo lhe con­cede sua assistência contínua, em virtude desta promessa solene: “Eis que estou convosco até a consumação dos séculos”? (Mat. XXVIII, 20).

Portanto é necessário que não somente a Igreja de Cristo exista hoje e em todos os tempos, mas ainda que ela permaneça idêntica àquela dos tem­pos apostólicos, senão seria preciso dizer – o que é inadmissível – ou que Nos­so Senhor Jesus Cristo não pode realizar seu desígnio, ou que Ele se enga­nou ao afirmar que as portas do inferno não prevaleceriam jamais contra ela. (Mat. XVI, 18)

Eis o momento de expor e de refutar um erro que está na base de toda esta questão e de onde procedem a atividade e os múltiplos esforços dos aca­tó­licos para confederar, como Nós dissemos, as igrejas cristãs. Os autores deste projeto tomaram de fato o hábito de citar a cada passo esta palavra devi­da a Cristo: “Que todos sejam um… Não haverá senão um só redil e um só pastor” (João XVII, 21; X, 16), como se, segundo a opinião deles, a oração e a pro­mes­sa de Jesus Cristo estivessem permanecido até agora como letra morta. Eles sus­ten­tam, com efeito, que a unidade de fé e de governo – que é o cará­ter da única e verdadeira Igreja – até agora quase jamais existiu e que ela não exis­te mais hoje: que se pode, dizendo a verdade, a desejar e a realizar algu­mas vezes por um comum acordo das vontades, mas que todavia é preciso con­siderá-la co­mo uma espécie de utopia. Eles acrescentam que a Igreja em si, por sua natu­re­za, está dividida, ou seja, constituída de nu­me­ro­sas igrejas ou comunidades particulares, ainda divididas, tendo alguns pontos comuns de doutrina, mas diferindo umas das outras para todo o resto; cada Igreja, segundo eles, goza os mesmos direitos, e seria demasiado se, da época apos­tó­lica aos primeiros Concílios ecumênicos, a Igreja fosse una e única. É preciso então, concluem eles, esquecer e desviar as con­tro­vér­sias, mesmo as mais antigas, e as diver­gên­cias de doutrina, que ainda con­ti­nuam a dividí-los hoje, e, com as outras ver­dades doutrinárias, propor e esta­be­lecer uma certa regra de fé comum; nesta profissão de fé, muito mais do que eles acredi­ta­riam, eles se sentirão ver­da­dei­ros irmãos; depois, as diversas igrejas ou co­mu­ni­dades, uma vez unidas numa sor­te de federação universal, se tor­na­rá possível lutar ener­gi­­camente e vito­rio­samente contra os progressos da impiedade.

Eis aí, Veneráveis Irmãos, o que todos repetem. Nisso, entretanto, de­cla­ram e concedem que o protestantismo rejeitou algo inconsideradamente certos dogmas ou certas práticas do culto exterior, todavia consolantes e úteis, enquanto a Igreja romana as guarda ainda. A bem dizer, eles se apres­sam de acrescentar que esta Igreja mesma se desviou e que ela corrompeu a reli­gião primitiva, acrescentando um certo número de doutrinas menos es­tran­geiras que contrárias ao Evangelho e as impondo à fé dos fiéis; eles ci­tam, entre elas, em primeiro lugar, a primazia de jurisdição atribuída a Pedro e aos seus sucessores na sé romana. Neste número, alguns, verdadeiramente pou­co numerosos, consentem em conceder ao Pontífice romano seja uma pri­mazia de honra, seja um certo poder de jurisdição ou de autoridade; to­da­via, esta primazia não seria de direito divino, mas resultaria em uma certa ma­neira de consentimento dos fiéis; outros vão mesmo até desejar que seus con­gressos, que se pode qualificar de adornados, sejam presididos pelo Sobe­ra­no Pontífice em pessoa. Entretanto, se se encontra bom número desses aca­tólicos pregando de boca aberta uma comunhão fraterna em Jesus Cristo, nenhum dentre eles sonha submeter-se ao Vigário de Jesus Cristo quando ele ensina, ou a lhe obedecer quando ele comanda. Todavia, eles afirmam que tra­tarão de boa vontade com a Igreja romana, mas sobre um mesmo solo, de igual a igual; na realidade, se eles o fizessem, sem dúvida alguma não con­clui­riam o pacto eventual que com o pensamento de não se obrigar a re­nun­ciar às opiniões que precisamente os mantêm, ainda hoje, em seus erros e em seus procedimentos habituais, fora do único redil de Cristo.

Nessas condições, é evidente que a Sé Apostólica não pode, sob pre­tex­­to algum, participar dos congressos deles; e os católicos não têm, a preço algum, o direito de os favorecer por seu sufrágio ou sua ação; fazendo isto, eles atribuiriam autoridade a uma religião falsa, inteiramente estranha à úni­ca Igreja de Cristo. Podemos Nós tolerar – o que seria o cúmulo da iniqüi­da­de­  – que a verdade, sobretudo a verdade revelada, seja assim posta em dis­cus­­são? Especificamente, com efeito, trata-se de defender a verdade revelada. Visto que é para todas as nações, para as instruir na fé evangélica, Jesus Cristo enviou seus Apóstolos; e por receio do menor erro da parte deles, ele quis que o Espírito Santo lhes ensinasse antes toda a verdade (João XIV,13), se­ria admissível que, na Igreja tendo o próprio Deus como chefe e guardião, esta doutrina dos Apóstolos haja completamente desaparecido ou sofrido algu­ma modificação profunda? Além disso, se o Evangelho conforme a decla­ra­ção explícita de Nosso Redentor, se refere não somente aos tempos apos­tó­li­cos, mas também a todas as épocas, como admitir que o objeto da fé se te­nha tornado, com o tempo, de tal modo obscuro, de tal modo incerto que as opi­niões mesmo contraditórias possam ser hoje toleradas?

Se fosse assim, precisaria então sustentar e que a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, e que a presença perpétua deste mesmo Espírito na Igreja e que a pregação do próprio Jesus Cristo perderam, desde muitos sé­cu­los, toda sua eficácia, toda sua beneficência – afirmação evidentemente blas­­­fematória. Porém há mais: o Filho único de Deus, de uma parte, tem diri­­­gido seus enviados para ensinar todas as nações e, de outra parte, im­pos­to a todos os homens a obrigação de crer nas “testemunhas preor­de­na­das por Deus” (Atos X, 41). Este comando, ele o sancionou por esta palavra: “Aquele que crê e será batizado será salvo; mas aquele que não crê será conde­na­do” (Marc. XVI, 16). Ora, este duplo preceito de Cristo – o de en­si­nar e o de crer, em vista da possessão da salvação eterna – não pode se ob­ser­var e mes­mo se compreender se a Igreja não expõe integralmente e pu­bli­ca­mente a dou­­tri­na evangélica e se, nesta exposição, ela não estiver abri­ga­da de todo peri­go de erro. Também são eles ainda extraviados aqueles que crêem na exis­tên­cia, em qualquer parte da terra, do depósito da verdade, mas que é preciso em sua pesquisa uma tal soma de trabalho, de estudos e de dis­cus­sões tão longas que para a descobrir e nela penetrar, a vida do homem aí sofreria a pena. Daí esta conclusão que Deus infinitamente bom se fez en­ten­der pelos Pro­fetas e seu Filho único para tornar sua revelação assimilável só por um pe­queno número de homens de uma idade bem avançada, e de modo algum para dar uma doutrina de fé e um código de moral capazes de dirigir os ho­mens durante todo o curso de sua vida mortal.

Estes pancristãos, por outro lado, que procuram federar as igrejas, pa­re­cem perseguir o muito nobre desígnio de desenvolver a caridade entre to­dos os cristãos; mas como imaginar que este crescimento da caridade se faça às custas da fé? ninguém ignora certamente que o próprio São João, o Apóstolo da Caridade, aquele que, em seu Evangelho, descobre, de algum mo­do, os segredos do Sagrado Coração de Jesus, aquele que não cessava de lembrar aos seus fiéis o preceito novo “Amai-vos uns aos outros”, proibia de um modo absoluto toda relação com aqueles que não professavam a doutrina de Cristo inteira e pura: “Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o re­ce­bais em vossa casa e nem sequer o saudeis” (II João 10). Assim pois, já que a caridade tem por fundamento uma fé sincera e íntegra, a unidade da fé deve ser, em seqüência, o laço primordial unindo os discípulos de Cristo.

Como, então, conceber a possibilidade de um pacto cristão, cu­jos ade­ren­tes, mesmo nas questões de fé, teriam o direito de conservar suas ma­­­nei­ras de ver e de pensar, mesmo que elas estivessem em contradição com as opi­niões dos outros? Por que fórmula, Nós vos perguntamos, homens de opi­­niões contraditórias poderiam se reunir numa mesma e única federação cristã? E, por exemplo, alguns afirmam que a Tradição sagrada é a fonte autêntica da Revelação, enquanto outros o negam. Alguns pensam que a hie­rar­­quia eclesiástica é, pela vontade divina, formada por bispos, padres e mi­nis­­tros, outros afirmam que ela foi introduzida pouco a pouco segundo as cir­cuns­­tâncias das épocas. Alguns adoram a Santíssima Eucaristia, graças a esta ma­ravilhosa transformação do pão e do vinho que se chama a transsubstan­cia­ção, Cristo realmente presente; outros, porém, declaram que o corpo de Cristo não se encontra presente senão pela fé ou por algum indício e pela virtude do Sa­cra­­mento. Aqueles reconhecem à Eucaristia ao mesmo tempo a natureza de sacrifício tão bem como de sacramento, estes não; vêem aí senão uma lem­­brança ou uma comemoração da última Ceia. Alguns julgam que é bom e útil crer que os Santos, e em particular a Virgem Mãe, reinam com Cristo e é pre­ciso os invocar, rezar para eles e rodear suas imagens de nossa ve­ne­ração, outros pretendem que este culto é ilegítimo, porque contrário à honra devida a Jesus Cristo, “único medianeiro entre Deus e os homens”.(Cf. I Tim. II, 5)

Em presença destas profundas divergências de opinião, Nós não per­ce­be­­mos mais a unidade da Igreja, quando esta unidade não pode resultar se­não de uma única regra de fé e de uma mesma crença de todos os cristãos. Pelo contrário, sabemos muito bem que se tende por aí à negligência da reli­gião, ou seja ao “indiferentismo” e àquilo que se denomina modernismo. Os infelizes que infectam estes erros sustentam que a verdade dogmática não é absoluta, mas relativa, ou seja, que ela deve se adaptar às exigências variáveis dos tempos e dos lugares, e às diversas necessidades das almas, pois ela não está contida em uma revelação imutável, mas deve, por sua natureza, se aco­modar à vida dos homens.

No que se refere aos dogmas de fé, existe ainda uma distinção abso­lu­ta­­mente ilícita: aquela que se julgou bom introduzir entre os artigos cha­ma­dos “fundamentais e não fundamentais” da fé, alguns devendo ser admitidos por todos e outros podendo ser deixados ao livre assentimento dos fiéis. Ora, a virtude sobrenatural da fé tem por objeto formal a autoridade de Deus re­ve­lante, autoridade que não sofre qualquer distinção desse gênero. Eis por­que todos os verdadeiros discípulos de Cristo crêem, por exemplo, no misté­rio da Augusta Trindade com a mesma fé que no dogma da Imaculada Con­cei­ção, naquele da Encarnação de Nosso Senhor e naquele do magistério infa­lí­vel do Romano Pontífice, no sentido, bem entendido, como o definiu o Con­cílio ecumênico do Vaticano. E, por terem sido solenemente decretadas e san­cionadas pela Igreja em épocas diversas e mesmo bem recentes, essas ver­da­des não são nem menos certas, nem menos dignas de fé não tivesse sido Deus que revelou todas?

O magistério da Igreja, estabelecido nesta terra de acordo com o de­síg­nio de Deus para guardar perpetuamente intacto o depósito das verdades re­ve­ladas e assegurar o conhecimento delas aos homens, é exercido cada dia pelo Ro­ma­­no Pontífice e pelos bispos em comunhão com ele; mas ele supõe ainda, todas as vezes que for necessário para se opor mais eficazmente aos erros e aos ataques dos heréticos, ou desenvolver com mais claridade ou com deta­lhes certos pontos da doutrina sagrada, a fim de os fazer penetrar mais no espí­rito dos fiéis, a missão de proceder por decretos às definições opor­tu­nas e sole­nes. Este costume do magistério extraordinário não introduz qual­quer in­ven­­ção nem acrescenta nada de novo à soma das verdades contidas, ao menos implicitamente, na Revelação que Deus confiou em depósito à Igreja; mas ou bem ele proclama o que até lá podia parecer obscuro a alguns espíri­tos, ou bem ele cria a obrigação da fé sobre um ponto que, anterior­mente, podia ser para alguns o objeto de alguma discussão.

Assim se compreende porque, Veneráveis Irmãos, esta Sé Apostólica jamais permitiu aos seus fiéis assistir aos Congressos dos acatólicos; a união dos cristãos não pode ser procurada de outro modo que não seja favorecer o retor­no dos dissidentes à única e verdadeira Igreja de Cristo, que eles tive­ram outrora a infelicidade de a abandonar. O retorno, Nós dizemos, à única e ver­­dadeira Igreja de Cristo, como tal e bem visível a todos os olhares, des­ti­na­da enfim, pela vontade de seu Autor, a permanecer tal com Ele mesmo a ins­­tituiu para a salvação comum dos homens. Pois, jamais ao longo dos séculos, a Esposa mística de Cristo foi profanada; ela não o será jamais segundo testemunha São Cipriano: “A Esposa de Cristo não pode ser deson­rada; ela é incorruptível e pura. Ela não conhece senão uma morada e, por sua casta reserva, conserva intacta a santidade de um único lar”. (De cath. Ecclesiae unitate, 6) O santo mártir se espantava ainda vivamente, em seu bom direito, que se pudesse imaginar “que esta unidade, fruto da esta­bi­li­da­de divina, consolidada pelos sacramentos celestes, fosse exposta a se partir sob o choque de vontades discordantes” (Ibid.). O corpo místico de Cristo, isto é a Igreja, é único (I Cor. XII, 12), homogêneo e perfeitamente articu­la­do (Ephes. IV, 15), à maneira de um corpo físico; é portanto ilógico e ridículo pretender que o corpo místico possa ser formado por membros espalhados, iso­lados uns dos outros; em seqüência, qualquer um que não esteja unido, não pode ser um de seus membros, nem soldado à sua cabeça, que é o Cristo. (Cf. Ephes. V, 30; I, 22)

Nesta única Igreja de Cristo, ninguém se encontra e ninguém habita sem reconhecer e aceitar, com obediência, a autoridade e o poder de Pedro e de seus legítimos sucessores. Não obedeceram eles ao Bispo de Roma, Pastor soberano das almas, os ancestrais daqueles que hoje professam os erros de Fócio e dos inovadores? Os filhos têm, hélas! desertado da casa pa­ter­na sem que por isto a casa se arrase, pois ela tinha o apoio da as­sis­tên­cia di­vina. Que eles voltem assim ao Pai comum; esquecendo os insultos pro­fe­ridos anteriormente contra a Sé Apostólica, ele os acolherá com toda a ter­nu­ra. Se, como eles o repetem, não têm outro desejo senão o de se unir a nós e aos nossos porque não se empenham de vir a esta Igreja “mãe e educadora de todos os fiéis de Cristo” (Conc. Lateran. IV, c.5)? Que eles escutem a voz de Lactancio escrevendo: “Sozinha… a Igreja católica conserva o culto ver­da­dei­ro. Ela é a fonte da verdade; a morada da fé, o templo de Deus; quem aí não entra ou quem sai disto perde toda sua esperança da vida e da salvação. Que ninguém se deixe levar pelas contestações obstinadas. É uma questão de vida e de salvação; se não se vela aí de modo atencioso e prudente, é a per­di­ção e a morte.” (Divin. Instit. IV, 30, 11-12)

Em definitivo, é à Sé Apostólica fundada nesta cidade, consagrada pelo sangue dos Príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo, é à esta Sé, Nós di­ze­­mos, “fundamento e gerador da Igreja católica” (S. Cypr., Ep. 48 ad Cor­ne­lium, 3), que devem retornar os filhos separados. Que eles aí retornem, não com o pensamento e nem mesmo com a esperança que “a Igreja de Deus viva, coluna e sustentáculo da verdade” (I Tim. III, 15) sacrificará a inte­gri­da­­de da fé e sofrerá os seus erros, mas, bem ao contrário, com a intenção de se submeter ao seu magistério e ao seu governo. Praza a Deus que este feliz acon­tecimento, que tantos de Nossos predecessores não puderam ver, Nós dele sejamos favorecidos, e que estes filhos, dos quais lamentamos o afas­ta­men­­to em conseqüência a conflitos funestos, Nós podemos os acolher com um coração paterno; que Deus Nosso Salvador, “cuja vontade é que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (I Tim. II, 4) se digne Nos ouvir quando Nós o suplicamos com todas as nossas forcas de bem querer reconduzir à unidade da Igreja todas as almas errantes. Nesta questão não se pode ser mais grave no apelo que Nós fazemos e Nós queremos que se recorra à intercessão da Bemaventurada Virgem Maria, Mãe da divina graça, triunfadora de todas as heresias, auxiliadora dos cris­tãos, para que ela Nos obtenha de ver brilhar logo neste dia tão desejado em que todos os homens ouvirão a voz de seu divino Filho “permanecendo fiéis à uni­dade do Espírito nos laços da paz”. (Ephes. IV, 3)

Veneráveis Irmãos, vós sabeis agora como este voto nos é caro; Nós dese­jamos também que todos os nossos filhos o saibam: não somente Nossos filhos católicos, mas ainda todos aqueles que vivem separados de Nós; para estes últimos, se eles imploram em uma humilde oração as luzes celestes, sem ne­nhu­ma dúvida eles hão de reconhecer a única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo e hão de vir por fim se unir a nós nos laços de uma caridade per­feita. Confiando nesta esperança, e como penhor dos favores divinos, assim como testemunho de Nossa benevolência paternal, Nós vos con­ce­de­mos de todo coração a vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e aos vossos fiéis, a Bênção Apostólica.

Dada em Roma, ao pé de São Pedro, na festa da Epifania de Nosso Senhor Jesus Cristo, 6 de Janeiro de 1928, o sexto ano de Nosso Pontificado.

 

PIO XI, PAPA

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