Se, porém, pouco se fala da existência estável de um extenso reino católico na Palestina, menos ainda se realça os gloriosos fatos que lá se passaram.
E quase não se menciona a figura de um homem excepcional, intrépido guerreiro até o holocausto por amor à Religião católica, Balduíno IV (1160 – 1185), o rei leproso de Jerusalém, que subiu ao trono aos 14 anos de idade.
No momento em que as maiores adversidades se acumulavam naquele Reino, a Providência divina parece ter querido suscitar um homem – melhor diríamos, uma chama de fé e coragem – para mostrar que tudo ainda poderia ser salvo se o quisessem seguir e imitar.
Balduíno IV lutou contra a lepra, doença então incurável, que nele se manifestou desde criança e o foi pragressivamente transformando num morto-vivo, quase um fantasma chagado, até levá-lo ao túmulo aos 25 anos de idade.
Lutou continuamente, com grande inteligência e firmeza, para resolver os graves problemas resultantes das desavenças entre os senhores feudais, as quais lhe causavam as maiores preocupações.
E teve de lutar, sobretudo contra numerosíssimos muçulmanos, nunca antes tão fortes e tão unidos sob a égide do terrível sultão Saladino, que atacava freqüentemente o Reino católico para desmantelá-lo.
A todos esses fatores altamente adversos, Balduíno IV soube sobrepor-se com fé e abnegação tais, que até hoje deixam boquiabertos os historiadores que dele se ocupam.
Nos últimos anos de sua vida, fisicamente inutilizado pela doença, fazia-se conduzir ao campo de batalha em liteira.
E sua presença incutia tal ânimo em seu exército e tal pavor no inimigo que, leproso e imóvel, ganhava para Cristo batalhas contra exércitos poderosíssimos.
“Sou um verme e não um homem” (Sl. 21, 7)
Eis seu retrato, em agosto de 1183:
“Do belo menino louro que nove anos antes havia recebido com fasto a coroa, não restava senão um inválido, um ser decaido, repugnante.
“O belo rosto não era mais que placas de carne marrom, fechando três quartas partes das órbitas, das quais todo olhar fugira para sempre, cortando-o do mundo, mergulhando-o numa noite eterna.
“Suas mãos elegantes estavam reduzidas ao estado de cotos. Seus dedos amortecidos haviam caído uns após outros, putrefatos.“Seus pés haviam tido a mesma sorte e estavam como encolhidos pelo mais cruel dos torcionários chineses.
“Coberto de placas e bolhas, o resto do corpo não estava diferente para se ver. Este homem que perdia pouco toda semelhança com um ser humano comunicava-se ainda com o mundo através de uma boca deformada.
“Pois se o corpo era pouco a pouco destruído, o espírito permanecia firme. Ao preço de esforços por vezes espantosos, ele continuava a assumir seu papel de rei.
“Jamais ele havia faltado a um combate, jamais fugido a uma responsabilidade. Agora, entretanto, que a febre fazia tremer seu infeliz corpo, no sufocante calor do mês de agosto, pela primeira vez ele se sentia sem possibilidades de empreender a menor coisa…
“A crise foi mesmo tão forte que ele teve medo de morrer. Não de comparecer diante de seu Criador, pois para isso ele estava há muito tempo preparado, mas de privar bruscamente seu Reino, seu exército, de um chefe”.* (Dominique Paladilhe, Le Roi lépreux, Paris, 1984).
Em novembro desse mesmo ano, Saladino cerca com grandes contingentes armados uma estratégica fortaleza católica, o Crac de Moab.
“O exército cristão preparava-se para acorrer em auxílio dos sitiados, infelizmente, porém, minado por divisões internas: “Então se produziu um acontecimento impressionante, escreve Paladilhe. Balduíno, a quem se imaginava agonizante, horrível e totalmente enfermo, já mergulhado nas trevas da eternidade, parecendo cortado do mundo, levantou-se de seu leito de mártir como um miraculado e manifestou sua intenção de seguir o exército.
“Animado por uma energia fora do comum, ele não renunciou. A todos ele iria mostrar o que era ser rei… Com ele a união se refez em torno de sua liteira de cortinas cuidadosamente baixadas”
“À aproximação do exército cristão, os muçulmanos se retiram: “O grande Saladino fugia diante de um fantasma… encerrado atrás das cortinas de sua liteira”. A simples presença do rei leproso tudo salvara.
No ano seguinte, nova tentativa dos muçulmanos: “Os defensores do Crac viram com estupor chegar a multidão infinita de seus agressores. Saladino tinha praticamente dobrado suas forças”.
“Vem, por fim, o exército cristão “pronto a enfrentar em combate desigual as forças de Saladino. O que lhe dava este ardor, esta coragem, era uma presença no meio dele, a de seu rei Balduíno.
“Havia da parte dele uma espécie de deliberação, de obsessão de seu dever, à qual não faltava grandeza. Até o fim ele queria ser um exemplo para todos de força de vontade e de sacrifício. Ante tanta nobreza, tanto desprendimento, as divisões internas entre os cristãos desapareciam em torno dele.
“Há aí um caso excepcional, único na História. O sultão ficou vivamente impressionado pela chegada heróica de Balduíno”, e acabou por retirar-se.
Seu biógrafo conclui: em face de Balduíno IV, “como não ficar tomado de admiração, de veneração mesmo… Em vão se procurará, através dos milenários a quem compará-lo. Jamais se viu reunidos num príncipe tanta coragem e espírito de sacrifício.
“É tempo que sua face perfurada pela lepra, mas resplandecente de uma luz interior, entre por sua vez na legenda com Godofredo de Bouillon e São Luís”.